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Revista Estudos Avançados
Estud. av. vol.7 no.18 São Paulo May/Aug. 1993
Alcântara Machado: testemunha da imigração
Rubens Ricupero
Para escrever esta apresentação só disponho, a rigor, de um
título: o de haver nascido e crescido no Brás, no seio de velha
família italiana desse bairro, dez anos apenas após o aparecimento
de Brás, Bexiga e Barra Funda.
Vinte anos antes e eu teria vivido no mundo dos personagens do
livro, o mundo da juventude de meus pais, o da primeira geração de
filhos de imigrantes italianos nascidos no Brasil.
As duas primeiras décadas do século marcam o momento de maior
intensidade da maneira de ser ítalo-brasileira. Antes, predominava o
ítalo, o estrangeiro inseguro, preocupado em sobreviver, ignorante
da língua e dos costumes. Depois, irá prevalecer, pouco a pouco, o
brasileiro, o neto ou bisneto de italianos integrado na comunidade,
vivendo em bairros de gente afluente, não guardando mais do que
algumas palavras na língua dos avós.
Entre esses dois pólos extremos, de cultura mais ou menos homogênea,
estende-se o período híbrido da mistura das línguas e das comidas,
do apagar gradual dos valores e imagens do país que ficou atrás e do
engajamento progressivo na realidade nova.
É quando os filhos de imigrantes, confiantes em seus direitos de
brasileiros natos, mais à vontade na língua que aprenderam no Grupo
Escolar do que no dialeto ouvido em casa, se lançam à luta pela
conquista de um lugar melhor na sociedade de adoção.
Às vezes com agressividade, sempre com energia, esses
ítalo-brasileiros vão abrir um espaço próprio, que a cidade lhes
concede com maior ou menor dificuldade, pois está também em plena
expansão.
Do burgo provinciano e modorrento de 1800, só animado pelos
estudantes da velha Escola de Direito, quase perdendo para Campinas
sua condição de Capital da Província, São Paulo prepara-se para
ingressar no ciclo contínuo de transformações que irá
multiplicar-lhe 40 vezes a população — dos 165 mil habitantes de
1890 para os mais de 7 milhões atuais.
A prosperidade do café na segunda metade do século XIX, antes das
crises de superprodução deste século, gera a acumulação de capitais
que vai tornar possível a arrancada da industrialização. Uma
convergência de circunstâncias propícias concorre para fazer de São
Paulo a grande metrópole industrial de hoje: os capitais dos barões
e comissários do café; a energia elétrica produzida pelos canadenses
da Light na represa Billings, vizinha à cidade; a mão-de-obra e o
mercado consumidor fornecidos pelos imigrantes; as restrições às
importações conseqüentes à Primeira Guerra Mundial.
Os imigrantes italianos serão, ao mesmo tempo, agentes ativos e
beneficiários da industrialização e os nomes peninsulares ficarão
para sempre ligados à revolução industrial paulista. A participação
italiana é sensível já na fase inicial de indústria de bens de
consumo, alimentos ou tecidos, dominada pelos Matarazzos e Crespis,
durante a qual o Conde Francisco Matarazzo aparece como a figura
simbólica dos novos magnatas, uma espécie de Rockefeller paulista.
Mais tarde, ela se acentua no desenvolvimento da indústria pesada de
máquinas e equipamentos, onde a inventividade mecânica dos italianos
do norte vai criar os gigantes industriais de hoje, os Bardellas, os
Dedinis, os Romis.
Se a História, mais sensível ao êxito ostensivo do que às vidas
obscuras, vai guardar apenas os nomes dos donos de fábricas, é
preciso não esquecer que eram também, em geral, italianos os que
operavam essas fábricas. E serão italianos os trabalhadores que
introduzirão no Brasil as correntes de pensamento e ação sociais da
Europa contemporânea, o que se chamava, na linguagem policial de
então, as doutrinas exóticas: o anarquismo, o socialismo, o
movimento sindical, a organização das primeiras greves.
É nesse contexto dinâmico de expansão econômica, de aumento da
população, de modernização urbana, de criação de oportunidades que
se situam dois fenômenos, um cultural, outro sociológico: a
Revolução Modernista de 22 e a emergência da geração dos filhos de
imigrantes. Do encontro desses mundos vai surgir o livro de
Alcântara Machado.
Os dois movimentos apresentam afinidades evidentes. Ambos são
jovens, vigorosos, modernos, inovadores, numa postura que se pode
resumir como basicamente otimista diante da possibilidade de
construir o futuro.
E o que vai explicar, no livro, de um lado, a ênfase na descrição do
que é força, ascensão, êxito, na vida do imigrante e, de outro, o
silêncio sobre o problemático e as tensões mais profundas, a
presença da dor apenas sob a forma de sentimento individualista.
Produto e, em parte, causa da súbita metamorfose paulista do início
do século, o modernismo de 22 não podia deixar de reagir ao
imigrante, principal manifestação da mudança na paisagem humana.
A sensibilidade dos modernistas à palavra faz com que o primeiro
registro do fenômeno novo ocorra no domínio da linguagem. A prosódia
das vogais exageradamente abertas, o ritmo cantante da frase, o
sabor das palavras híbridas e das distorções gramaticais ferem o
ouvido dos jovens escritores como um som irreverente e bem-vindo,
uma espécie de reforço popular e inesperado na luta contra os
Coelhos Neto, os Ruis Barbosa e outros que macaqueavam a sintaxe
lusíada.
Antes de Alcântara Machado, já Mário de Andrade, o grande nome da
Escola, iniciara o processo de incorporar à linguagem literária as
manifestações populares do dialeto ítalo-paulistano em textos
bilíngües citados por Alfredo Bosi:
E os bondes riscam como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
ferindo um orifício na treva cor de cal....
- Batat' assat' ó furnn.....
(Noturno)
Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem....
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos de Paulicéia são como enterros de virgem....
Italianinha, torna al tuo paese.
(Paisagem nº 2)
Laranja da China, laranja da China, laranja da China.
Abacate, cambucá e tangerina.
Guardate. Aos aplausos do esfuziante clown,
heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,
passa galhardo um filho de imigrante,
loiramente domando um automóvel.
(O Domador)
O domador de automóvel bem poderia ser Adriano Melli, filho do
Cav. Uff. Salvatore Melli do conto A Sociedade., o mesmo que, ao
volante do Lancia Lambda vermelhinho e com a ajuda dos milhões do
pai, conquista a filha da orgulhosa família paulista do Conselheiro
José Bonifácio de Matos e Arruda.
Mais do que em Mário e Alcântara Machado, a língua do imigrante vai
surgir, não como frase ou pregão enxertados no texto, mas como o
próprio texto, no Trilussa do dialeto ítalo-paulistano, o poeta Juó
Bananére, também conhecido como Alexandre Marcondes Machado. É ele o
único a tentar, como o Guimarães Rosa codificador dessa nova língua,
sua reelaboração caricatural, como estrutura verbal da expressão
humorística. É pena que a forma satírica de A Divina Increnca ou o
humor ainda jovem de paródias como U Lobo i u Curdeirigno tenham
comprometido, aos olhos críticos, o sentido original da experiência
lingüística. Juó Bananére ainda espera por alguém que o valorize.
Quase vinte anos após Brás, Bexiga e Barra Funda, Oswald de Andrade
iria, igualmente, recolher em Marco Zero (1943-1945), alguma coisa
da língua e da atmosfera humana da imigração, não só italiana mas
também japonesa.
A meio caminho, lingüisticamente, entre a nota italiana isolada de
Mário e o texto, em português macarrônico, de Marcondes Machado,
Alcântara Machado vai usar a expressão bilíngüe não só como recurso
estilístico, mas como elemento relevante da narrativa e da
composição dos personagens. O Cav. Uff. Salvatore Melli, proclamando
que o capital sono io ou o barbeiro Tranquillo Zampinetti,
comentando, no Centro Político do Brás, que a gente bisogna no
Brasil, bisogna mesmo., é d'un buono governo, mais nada, não
existiriam, não teriam consistência se não misturassem as línguas.
A originalidade de Brás, Bexiga e Barra Funda não está, porém, em
haver captado o fato lingüístico novo, o que outros haviam feito
antes, mas em ter ido além. No livro, o italiano não é só personagem
episódico, como em Mário de Andrade, ou pretexto de sátira, como em
Juó Bananére. O imigrante dos contos de Alcântara Machado, sua vida
e a dos seus filhos, os triunfos e desgraças pequeno-burgueses que
se desenrolam nas casas modestas das ruas do Gasómetro ou do
Oriente, constituem, pela primeira vez, a própria trama, o núcleo
central, a matéria exclusiva da obra literária.
É nisso que reside a contribuição principal, única e insubstituível,
de Alcântara Machado. Única porque o seu pioneirismo não teve
imitadores no mesmo nível. Insubstituível porque o escritor fixou,
em sua fugacidade, um mundo que não mais existe.
O Brás da minha infância já não era o bairro maciçamente italiano do
barbeiro Tranquillo Zampinetti, do conto Nacionalidade. A própria
ascensão social do barbeiro e de muitos outros que não foram
personagens de Alcântara Machado provocara o êxodo dos antigos
imigrantes para bairros de classe média. As ruas das imediações da
velha estação ferroviária do Norte esvaziaram-se de italianos e
foram invadidas por levas de imigrantes mais recentes: primeiro, os
andaluzes, nos anos 40; mais tarde, os brasileiros do Nordeste.
Bastaram pouco mais de dez anos para fazer desaparecer para sempre a
pequena Itália que Alcântara Machado retratou, no efêmero do seu
apogeu. Era inevitável que a mobilidade social de São Paulo fosse
incessantemente apagando com u'a mão, as paisagens humanas e sociais
que o dinamismo urbano desenhava com a outra.
Foi um acaso pelo qual devemos ser gratos que aquele momento
passageiro tivesse encontrado o intérprete capaz de dar-lhe vida
perene, através da transposição literária. Não fosse a sensibilidade
de um jovem de 26 anos, esse mundo colorido e forte teria se
desvanecido sem deixar traços, a não ser os que sobreviveram na
reminiscência dos que vão partindo. Desses traços, poucos fixaram-se
em letra de imprensa, como o livro de memórias de Zélia Gattai,
Anarquistas Graças a Deus, os depoimentos de Memórias e Sociedade,
feitos a Ecléa Bosi, as evocações sobre o Bexiga de época mais
recente, de autoria da Haim Grunspun.
Flagrantes rápidos, fotográficos, os contos de Alcântara Machado
capturaram, com o gesto impulsivo de retratista, a linha essencial
daquelas vidas humildes. Quem traz em si a herança da imigração não
precisa procurar além dos limites da própria família para encontrar
os que podiam ter servido de modelo às figuras deste livro: o velho
italiano que se aposenta, com prédios e dinheiro no banco e vai se
dedicar a acompanhar diariamente a construção da capela da família
no cemitério do Araçá, símbolo sólido da ancoragem definitiva na
nova terra; o imigrante que conserva orgulhoso a velha
nacionalidade, sem por isso deixar de votar com carteira falsa e
tornar-se cabo eleitoral e sustentáculo da oligarquia do Partido
Republicano Paulista; o sonho da riqueza, que quase sempre toma a
forma concreta do palacete na avenida Paulista, do Isotta Fraschini
de luxo, do filho colando grau de bacharel, com a volta triunfal
para casa, de cartola, a fim de esmagar os vizinhos....
A imagem do italiano que se reflete nestas histórias é, em geral,
positiva e benevolente, com a ponta de condescendência de um
superior social que se sente fora do alcance da competição. É
inegável a empatia do escritor pelos seus personagens, nenhum dos
quais é totalmente reprovado. Há, é claro, alguma ambigüidade com
relação à petulância desafiadora, à ameaça latente do imigrante em
ascensão. A figura de Natale Pienotto, por exemplo, próspero
proprietário do Armazém Progresso de São Paulo, especulador de
gêneros alimentícios, corresponde — em Alcântara Machado — ao vilão
Venceslau Pietro Pietra — do Macunaíma de Mário de Andrade —, e sua
raiz é a mesma condenação social à agressividade incômoda do
imigrante de sucesso. Mas o vendeiro do Bexiga é, no fundo, muito
mais simpático e gostável do que o misto de ogre e gangster Pietro
Pietra, subdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente
florentina, como os Cavalcantis de Pernambuco.
O estereótipo popular contra o estrangeiro raramente aparece e,
quando o faz, não se dirige significativamente contra o italiano,
mas sim contra o alemão, tido na conta de elemento refratário à
absorção. Em Tiro de Guerra nº 35, por exemplo, o patriotismo
exaltado de Aristodemo Guggiani não suporta a gozação insolente com
que o praça Guilherme Schwertz escracha com o hino nacional e,
depois de xingar-lhe a mãe, assenta-lhe violento tabefe, no momento
em que o alemão alega não ser a mãe brasileira para merecer o
xingamento... Está nítido, nesse conto, o contraste entre dois
estereótipos: o do italiano, fácil de integrar, até patriota, por
isso visto com simpatia e alívio e o do alemão, odioso no seu
desprezo pelo nacional.
A ideologia camuflada nestas fábulas é, em outras palavras, a da
absorção rápida do imigrante. Os pobres integrar-se-ão através do
fascínio da riqueza entrevista junto aos poderosos da terra, o Buick
que seduz Carmela, o ursinho felpudo que faz chorar Lisetta, todos
símbolos de status desejável, que só requer adesão e trabalho duro.
Os ricos serão admitidos à aliança pelo casamento, com as boas
famílias empobrecidas, caso de Adriano Melli, ou serão cooptados
pela classe dominante quando revelem velhacaria inata, disposta a
renunciar ao próprio nome, como no caso do orfãozinho Gennaro, que
se transforma no futuro deputado Januário Peixoto de Faria.
Nesse sentido, o conto-síntese do livro, não por acaso situado em
seu fecho, é Nacionalidade, que descreve a lenta evolução de
Tranquillo Zampinetti, de barbeiro pobre a rico proprietário de
imóveis, de patriota arrebatado pelas façanhas militares italianas,
às turras com os filhos renitentes à língua paterna, a oportunista
político, coluna do Partido Republicano Paulista, que, pela mão do
filho advogado, requer sua naturalização.
Zampinetti, domesticado e nacionalizado, simboliza a dissolução
final da ameaça italiana. Com sua capitulação no término do volume,
o escritor inconscientemente exorcizou e liquidou aquele mundo que
lhe inspirou os contos, pitoresco, é verdade, mas inquietante na sua
diversidade, na sua estranheza, no seu vigor.
A língua das histórias é enxuta, rápida, ágil, telegráfica. Tristão
de Ataíde já havia destacado o estilo cinematográfico de Pathé Baby,
na velocidade dos cortes, no ritmo acelerado das seqüências, na
fugacidade das impressões. A frase é elétrica, curta, mais nervo que
carne, mais verbo que adjetivo, mais ação que descrição. Há pouca
introspecção e subjetividade. A realidade exterior é que conta. Como
nos Futuristas italianos que influenciaram o nosso Modernismo —
Marinetti, Carra ou Boccioni —, há um verdadeiro fascínio com o
movimento, sinônimo de modernidade. No texto aparecem, relativamente
com menor freqüência, cores ou cheiros.
O que sobra é som, barulho, movimento. Até o frio se escuta, o grito
do claxon dos automóveis ponteia as narrativas, o sargento clarina
as ordens de comando, a mãe beija a testa do menino
chuchurreadamente, o vestido grudado à pele serpeja no terraço, a
locomotiva fumegando no carrinho de mão apita amendoim torrado, os
bondes formando cordão esperam campainhando o zé-pereira.
Os contos são estrepitosos, povoados de berros, estrondos, gritos,
freadas de carros, canções e bandas marciais.
Um resumo disso tudo é o Corinthians (2) vs. Palestra (1), das
primeiras aparições em nossa literatura do que viria a ser a paixão
nacional, o futebol, naquele tempo ainda não profissionalizado. O
conto é puro movimento e ação, cinema já com banda sonora, roteiro
pronto para filmagem, sem faltar os cortes.
É por esse caráter eminentemente urbano, paulistano até a medula,
que Agripino Grieco quis fazer a aproximação de Alcântara Machado
com Manoel Antônio de Almeida, ambos citadinos, ambos descobridores
da vida popular das ruas e praças. A analogia pára aí, todavia, na
frescura plebéia dos diálogos e dos tipos, pois o tempero picaresco
de Memórias de um Sargento de Milícias tem sabor muito distinto dos
quadros alegres ou melodramáticos, mas sempre vertiginosos, da
Paulicéia apressada de Brás, Bexiga e Barra Funda.
Houve quem se admirasse, Francisco de Assis Barbosa, por exemplo, no
prefácio magistral e definitivo que escreveu para as Novelas
Paulistanas, de que fosse de um paulista de 400 anos a vocação de
afinar e sintonizar com esse pequeno universo barulhento e vigoroso
dos bairros populares. De fato, à primeira vista não podia ser mais
marcante o contraste entre a parte da cidade que deu nome ao livro e
as origens aristocráticas de Antonio Alcântara Machado, bisneto de
um presidente de cinco províncias do Império, neto e filho de
professores da Faculdade de Direito; seu pai, José de Alcântara
Machado d'Oliveira, além de jurista, tendo sido Senador Federal,
Constituinte, autor de Vida e Morte do Bandeirante, membro da
Academia Brasileira de Letras. O filho Antônio andou a meio caminho
de reproduzir a carreira político-literária do pai (participou da
Revolução de 1932, foi secretário da bancada paulista na Assembléia
Constituinte e chegou a ser eleito Deputado pelo Partido
Constitucionalista de São Paulo), só não o fazendo devido à morte
prematura com apenas trinta e quatro anos, em conseqüência de uma
operação tardia de apendicite.

O contraste entre a aristocracia do autor e a vitalidade plebéia
do tema funciona, no entanto, mais como estímulo do que como
estorvo. Além da atração dos opostos, raiz provável do impulso
inicial do livro, outra razão explica o aparente paradoxo: era
preciso estar situado longe, o mais longe possível daquele mundo de
imigrantes para captar-lhe a originalidade e o sabor, imperceptíveis
para os participantes, que não dispunham de perspectiva, nem de
distância emocional. E se realmente as tivessem, é mais provável que
percebessem como defeitos e não como qualidades tudo o que os
tornava diferentes, a começar pelos nomes, empenhados como estavam
os filhos de imigrantes em se fazerem aceitos, em serem iguais.

Ou se julga acaso que era por outro motivo que Lorenzo e Bruno se
recusam a entender as ordens em italiano de Tranquillo Zampinetti ou
que Aristodemo Guggiani tivesse ajudado a empastelar o Fanfulla que
falou mal do Brasil?
É sugestivo, a esse respeito, que, enquanto paulistas genuínos como
Mário de Andrade, Marcondes Machado, Alcântara Machado se deixavam
seduzir pelos temas e pelo dialeto ítalo-paulistanos e escreviam
sobre o Brás, o Bexiga e a Barra Funda, o ítalo-brasileiro Menotti
del Picchia ia, pouco antes, buscar inspiração no mais tradicional
regionalismo brasileiro para compor seu Juca Mulato (1917).
Mas, se a distância e a elevação sociais conferem ao observador
senso de perspectiva e visão dos contornos exteriores, tendem, ao
mesmo tempo, a negar-lhe a compreensão mais profunda da realidade
interior.
É o que Alfredo Bosi aponta em Alcântara Machado, no qual reconhece
o grande prosador do Modernismo paulista, o renovador da estrutura e
do andamento da história curta. Depois de aproximá-lo a Lima
Barreto, no realismo de uma literatura voltada para as ruas da
cidade, o crítico contrasta a pungência do romancista dos subúrbios
do Rio com o divertissement das páginas do paulistano. "Nelas, uma
análise ideo-estilística mais rigorosa não constata nenhuma
identificação coerente com o imigrante, pitoresco no máximo,
patético porque criança (o conto do Gaetaninho), mas, em geral,
ambicioso, petulante, quando capaz de competir com as famílias
tradicionais em declínio. O populismo literário é ambíguo:
sentimental, mas intimamente distante... é sensível, a uma leitura
crítica dos contos, esse fatal olhar de fora os novos bairros
operários e de classe média..." E mais adiante: " foi, assim, uma
inclinação liberal e literária pelo pitoresco e pelo anedótico que o
fez tomar por matéria de seus contos a vida difícil do imigrante...
esses dados de base ajudam a entender os limites do realismo do
escritor, visíveis mesmo nos contos melhores, onde o sentimental ou
o cômico fácil, mimético, acabam por empanar um visão mais profunda
e dinâmica das relações humanas que pretendem configurar".
Há muito de exato nessas observações, em especial a condenação ao
abuso do pitoresco e do anedótico. Ao mesmo tempo, o juízo soa
severo, talvez por dar ênfase insuficiente ou não admitir como
atenuante o contexto histórico-cultural em que se situaram tanto
Alcântara Machado como os seus personagens.
A tragédia pessoal de Lima Barreto, seus fracassos, o alcoolismo, a
consciência aguda do preconceito contra sua situação de mulato, o
tempo histórico e o ambiente depressivo em que atuou, tinham de
concorrer para um tipo de obra onde o dramático e o contraditório da
condição humana ocupariam naturalmente um lugar de destaque.
Por outro lado, os modernistas paulistas e a primeira geração de
ítalo-brasileiros eram gente inclinada, por temperamento e condições
de vida, ao otimismo, cheia de entusiasmo pela ação, de ânimo
construtivo, resoluta, confiante no homem e no mundo. São Paulo de
então era uma cidade adolescente, num nível alto do seu poderio
político e econômico, em plena expansão de potencialidades que
pareciam não conhecer limites, muito antes de aparecerem as crises
do próprio crescimento e, com elas, a percepção perturbadora das
insuficiências.
Os próprios imigrantes e seus descendentes, contagiados pelo ritmo
da cidade viam, ou acreditavam ver, as oportunidades surgirem a cada
canto. Para embalar os sonhos mais impossíveis, aí estavam, como na
América do Norte, as histórias exemplares dos condes papalinos, dos
barões da indústria — Matarazzo, Martinelli, Crespi —, de que se
narrava a trajetória maravilhosa de self-made man surgidos do nada.
Esse ambiente dinâmico, e muito menos o confortável background de
homens ricos e cultos de muito dos participantes ou simpatizantes do
Modernismo, não convidavam obviamente à visão crítica da sociedade e
do homem. Não deixa de surpreender que, apesar de coincidir com o
ano de abertura do ciclo de instabilidade militar do Tenentismo, o
qual desembocaria na revolução de 30 e na destruição da República
Velha, a Semana de Arte Moderna, concentrada na renovação formal e
estética, tivesse produzido reflexão relativamente parca sobre os
problemas sociais e políticos do Brasil. Excetuam-se, é certo, as
obras de Paulo Prado ou, mais tarde, de Sérgio Buarque de Holanda.
Quem sabe uma das explicações para o fato se encontre na situação
privilegiada de São Paulo, beneficiário do status quo político e
social de então e, assim, pouco inclinado a contestar essa ordem que
lhe trazia tantas vantagens. Muitos dos modernistas de 22 ou mais
tarde, Paulo Prado, por exemplo, ou Alcântara Machado, estavam
seguramente no topo da sociedade paulista, onde também se situava
Dona Olívia Penteado, cujos salões foram a sede simbólica da Semana
de 22.
Desse ponto de vista, se a ausência de sentido trágico da vida ou de
consciência social tiverem de ser vistas como falhas insanáveis do
livro de Alcântara Machado, igual condenação deveria ser estendida a
todo o Modernismo paulista, cujo forte nunca foi o de problematizar
introspectivamente o eu ou de colocar em questão os fundamentos do
sistema social dominante.
Foi essa, aliás, uma das razões do distanciamento que logo separou
Nordeste e São Paulo: os regionalistas nordestinos Gilberto Freyre,
José Lins do Rego, vendo nos paulistas rapazes grã-finos, de boa
família, que sabiam falar francês e professavam doutrinas estéticas
importadas.
Aí, também, a diferença de contexto histórico-social esclarece, em
parte, os motivos do caminho original seguido pelos nordestinos, ao
inaugurarem, por exemplo, o ciclo do romance regional da decadência
do açúcar ou da seca, com José Américo, José Lins do Rego, Raquel de
Queiroz, Graciliano Ramos. Não houve na época, nem provavelmente era
de esperar que houvesse, romance social equivalente em São Paulo,
por faltarem exatamente as condições sócio-culturais cuja ausência
explica que Brás, Bexiga e Barra Funda seja o livro que é e não a
visão crítica e desmistificadora da imigração.
Talvez seja até excessivo cobrar tais propósitos de um livro que
confessa explicitamente na introdução, intitulada Artigo de Fundo:
"Brás, Bexiga e Barra Funda... tenta fixar tão somente alguns
aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana... Não comenta.
Não discute. Não aprofunda. Principalmente não aprofunda... tudo são
fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua.
O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará
amanhã o seu historiador. E será analisado e pesado num livro".
Crônica urbana, narração de episódios, fixação de aspectos da vida,
visão parcial, em suma. O escritor sentiu não ter forças ou
oportunidade para mais. Deixou para outros a tarefa, até hoje não
tentada, de compor a grande síntese étnico-social do italiano no
Brasil.
Teria sido possível esboçá-la, naquele momento ou hoje? E duvidoso.
A experiência do encontro do italiano com a terra brasileira foi
sempre diversa, heterogênea, partida em fragmentos difíceis de
reunir em vitral coerente.
A fragmentação já vinha com o imigrante. A maioria pertencia à
geração quase contemporânea da unificação, ainda muito recente e não
interiorizada totalmente. A imagem do país que traziam não era a
Itália grande, nem mesmo a província, mas a aldeia, o paese, o
povoado. O que os unia era certa identidade cultural, não a língua,
pois falavam mil dialetos, nem a unidade política recém-conquistada
(e alguns ainda figuravam no passaporte como austríacos).
No Brasil, a essa diversidade de origem, ao particularismo importado
com o imigrante, vinha somar-se a diversidade das paisagens e
circunstâncias da acolhida.
Os extremos da condição de imigrante foram, ou o estrangeiro só,
submerso na comunidade luso-brasileira, ou o pequeno grupo
transplantado intacto da Itália para o interior do Brasil, com
mínimo contacto com os nacionais.
O primeiro foi o destino dos isolados em áreas como o Rio, Minas ou
Bahia, onde o imigrante-unidade era logo dissolvido rna massa
brasileira, sem guardar muitos traços da velha identidade.
O caso oposto foi o dos colonos do Sul, muitas vezes vênetos,
trentinos, aportados à Santa Catarina ou ao Rio Grande do Sul. Lá
conseguiram constituir uma agricultura de pequena propriedade,
periférica e complementar com relação ao latifúndio pecuário. As
terras que lhes couberam eram as desprezadas encostas das serras ou
os solos pouco férteis, onde trabalho e engenho criaram uma economia
baseada no fabrico do vinho, nos cereais, no porco.
Como os alemães, os colonos italianos dessa região viveram em
comunidades fechadas, quase segregados do meio. Quando o Cardeal
Luciani, Patriarca de Veneza e futuro João Paulo I, veio ao Brasil,
visitou, no Rio Grande, essas colônias onde o dialeto, as canções,
os costumes vênetos se preservaram intactos há mais de 100 anos, em
vales quase inacessíveis, de nomes misteriosos, como Faxinal do
Soturno. E lá e nas colônias alemãs que a Igreja brasileira vai até
hoje buscar seus padres, seus futuros cardeais e bispos. Daí saíram
também intelectuais, políticos, profissionais, militares que povoam
a vida pública dos Estados sulinos de nomes italianos ou alemães. A
cultura italiana que se conservou nessas paragens é nitidamente
setentrional: a polenta de milho, o vinho, o artesanato de metais
(de Abramo Eberle, por exemplo).
Em São Paulo, a experiência foi intermediária. Importado para
substituir o negro escravo, o italiano vinha plantar café como
assalariado e não para tornar-se pequeno proprietário. Não havia
para ele lugar ou acesso à terra no latifúndio cafeeiro. Não admira
que, logo, a maioria descobrisse o caminho das cidades, onde ia
encontrar patrícios vindos diretamente para o ambiente urbano.
Operários de fábrica, pedreiros, carpinteiros, artesãos, oficiais de
todos os ofícios, pequenos comerciantes, prestadores dos mil
serviços de que se alimenta a cidade grande, esses imigrantes
citadinos tinham a vantagem do número e não podiam ser dissolvidos
no caldo ralo da população anterior.
Ao chegar à cidade, o primeiro impulso do imigrante era tentar
reconstituir a comunidade rural de origem, recompor um ambiente
familiar onde a língua, os conterrâneos, os alimentos conhecidos,
lhe devolvessem o sentimento de segurança e de unidade que tinham
ficado atrás, além do Atlântico. O bairro era, nesse sentido, como
que a colônia rural transposta para o contexto urbano, o núcleo de
solidariedade grupai que fornecia proteção, tranqüilidade interior,
durante o período de aprendizagem da língua e das coisas da terra.
Assim, à medida em que a integração era uma possibilidade real, o
bairro do imigrante passava a ser essencialmente transitório, etapa
de maior ou menor duração na qual se reuniam forças para o salto da
ascensão social. A mobilidade vertical da São Paulo de começos do
século se traduz horizontalmente pelas mudanças e deslocamentos para
vizinhanças mais apetecíveis, pelo esvaziamento e perda de
características dos setores citadinos italianos que nunca chegarão a
transformar-se em guetos homogêneos como a Little Italy de Nova York
e outras cidades americanas.
Concorria também para isso o fato de que a aparente identidade
uniforme do imigrante, quando contrastado ao natural da terra,
desaparecia fragmentada em pedaços, no momento em que se abstraía do
meio exterior para prestar atenção aos localismos peninsulares, à
Babel dos dialetos, aos preconceitos de gente da Alta contra os da
Baixa Itália etc.
Durou vinte anos talvez, de 1900 a 1920, o ponto alto, a fase de
apogeu dos bairros compactos, maciçamente italianos, os três que
deram nome ao livro e outros que poderiam igualmente figurar no
título: Belenzinho, Moóca, Pari, Ipiranga.
Quando Alcântara Machado escrevia suas crônicas, a paisagem humana
já mudava de aspecto e, uma década depois, aquele momento havia
passado para não mais voltar.
Em meus tempos de criança, nos anos 40, restava algo ainda do
período áureo de afirmação, no espaço urbano, da primeira geração
ítalo-brasileira. Só posso falar, é claro, de minha experiência, que
é, como a de todos descendentes de italianos, fragmentária,
incompleta, mutilada.
Não posso emprestar a voz para recompor o itinerário dos italianos
que foram plantar café no Espírito Santo e se caboclizaram. Nada sei
dos colonos vênetos cultivando suas vinhas e estendendo as redes de
caçar passarinho nas montanhas de Bento Gonçalves ou de Caxias.
Mesmo em São Paulo, não conheci, nem por mim, nem pela tradição oral
de família, o destino dos que antes da cidade grande, passaram pelas
casas de colono das fazendas de café.
Da Paulicéia, cenário exclusivo deste volume, meu conhecimento é
parcial, restrito, truncado. Dentro da vasta experiência humana dos
milhões de italianos ou descendentes que aqui viveram, meu horizonte
é pobre e limita-se, praticamente, a dez ou vinte ruas do bairro do
Brás e a alguma coisa do Bexiga.
O Brás, dos três Bs do título o mais operário, bairro da estação de
estrada de ferro que levava ao porto de Santos, do Mercado, da
Hospedaria dos Imigrantes. Hoje ainda permanece, entre os três, o
mais pobre e sem brilho.
O Bexiga, bafejado pela proximidade prestigiosa da avenida Paulista,
intelectualizado pelos teatros que vieram na trilha do Teatro
Brasileiro de Comédia, virou bairro de moda, zona boêmia, de
cantinas sofisticadas. Até Museu tem para preservar sua história. O
lado bom disso tudo foi ter-lhe permitido conservar os belos
sobrados de fachadas de estuque trabalhado — com as datas do
princípio do século e iniciais do proprietário, em relevo —,
construção de anônimos mestres-de-obra italianos.
Ainda alcancei a época dos cortiços do Brás, vilas imensas, alguns
de arquitetura fantástica, em que se apinhavam, em promiscuidade,
dezenas de famílias. De cada lado, fileiras de sobrados com dois ou
três andares, separados por uma rua central de paralelepípedos,
unidos no alto por trave lembrando mastros e que davam ao conjunto
uns ares marinhos de galeão encalhado.
Lembro do espanto com que assisti — não deveria ter mais que cinco
ou seis anos — à saída, de um desses cortiços, do enterro de uma
jovem recém-casada de vinte anos e os gritos lancinantes com que os
parentes napolitanos despedaçavam ao solo as imagens de barro dos
santos fracassados e ingratos, surdos às promessas, negadores do
milagre implorado.
Meu mundo, até os 18 anos, era o próprio miolo, a quintessência do
Brás tradicional. Nossa família, uma das últimas a deixar o velho
sobrado patriarcal, vivia perto da avenida Rangel Pestana, a algumas
centenas de metros da Matriz do Bom Jesus do Brás, ao lado da
famigerada rua Caetano Pinto, numa travessa da rua Carneiro Leão.
Perto ficavam a rua do Gasômetro, onde Tranquillo Zampinetti brandia
perigosamente a navalha e as ruas Piratininga e da Figueira, nas
quais o barbeiro, já próspero, vai adquirir prédios de rendimento.
Além dos sobrados e das precárias habitações populares dos cortiços,
as ruas daquela zona eram ocupadas por fábricas, armazéns como o de
Natale Pienotto, cantinas com queijos e lingüiças pendurados à
entrada como mobiles apetitosos.
Muitos dos pioneiros italianos já se haviam mudado para os bairros
de maior prestígio, de onde vinham, às vezes, visitar os antigos
vizinhos, com secreta inveja da vida simples do Brás, do jogo de
bocee nos fundos das cantinas, do café que se tomava com zambucca.
Em lugar dos italianos desertores, os andaluzes, revolucionários
anti-franquistas, fundadores do clube de futebol de várzea Os Onze
Milicianos, erguiam a bandeira com o roxo espanhol da República. Ao
lado das pizzarias, floresciam as casas onde se compravam, nas
manhãs frias de névoa e garoa, os churros dourados para acompanhar o
café com leite fumegante.
Em meio à multiplicidade das origens peninsulares, naquela colcha de
retalhos de dialetos, alguns grupos formavam exceção pela coesão
interna, pelo grau de homogeneidade. Tinham quase a característica
de clãs, as pessoas ligadas entre si por parentesco, com o padre
católico à frente, diretamente importado do paese. Em torno do
padre, construíam-se a igreja e a comunidade, preservadas contra os
intrusos.
Dois desses grupos se destacavam nas vizinhanças. Um deles, nos
fundos da rua Caetano Pinto, era de gente de Caserta ou Pozzuoli,
nas imediações de Nápoles, quem sabe conservando ainda alguns genes
dos atenienses que fundaram Parténope demasiado perto do vulcão.
Eram devotos da Madona de Casaluce, em cuja honra ergueram uma
capelinha singela pintada de anil, enquanto esperavam os recursos
para edificar a igreja definitiva. Para esse fim, todo ano
engrinaldavam a rua de ponta a ponta, com arcos e bandeiras, numa
grande quermesse à qual não faltava sequer uma banda de velozes e
musicais bersaglieri. O esforço ficou subitamente truncado quando,
em lance digno de uma comédia dialetal de Eduardo de Filippo, o
tesoureiro fugiu com o dinheiro acumulado na caixa.

Do outro lado da avenida Rangel Pestana, perto do Gasômetro e do
Mercado, ficava o feudo dos bareses, gente sisuda, que desaprovava
as gabolices e os hábitos tagarelas dos poucos sérios napolitanos.
Esses bareses eram, na realidade, pugliese de Polignano a Mare,
devotos de San Vito Mártire ou dos irmãos igualmente mártires Cosme
e Damião, cujas bandeiras de seda coloridas em vermelho e verde
saíam em procissão nas festas dos santos. Eram famosas no bairro as
quermesses de San Vito e São Cosme e Damião, encerradas
triunfalmente com a prova do pau de sebo e brilhantes espetáculos
pirotécnicos, financiados pelos sólidos bareses, donos do comércio
atacadista de cereais da rua Santa Rosa, nas imediações do Mercado.
Menos estetas que os napolitanos, mas homens práticos, escorados nas
realidades tangíveis, a igreja de S. Vito que construíram é feia,
desgraciosa, parecendo mais um edifício de apartamentos. Não
obstante, lá estava ela, dominando o bairro, quando os rivais de
Casaluce pareciam haver abandonado a partida.

Houve outros clãs similares, quase todos meridionais, como o dos
calabreses do Bexiga, construtores da Igreja Madona da Acheropita, d
imagem não-pintada por mão humana dos gregos, os mesmos gregos
ancestrais desses cocheiros calabreses, em cujas Calábria ou Lucânia
helênicas haviam florescido Pitágoras, o iniciado, e Parmênides de
Élea, o primeiro metafísico a intuir o ser...
Minha avó paterna Mariângela era pugliesa de Barletta, cidade da
Disfidda e do Colosso, a estátua do imperador bizantino Heracles e,
no seu ciumento localismo, reagiu indignada quando insinuei alguma
afinidade entre sua terra e a dos desprezados habitantes de
Polignano, a alguns quilômetros de distância. Mais tarde, quando li
a história da conquista normanda de Barí e Barletta, algumas décadas
após o ano 1000, pelo Conde Roger, irmão de Roberto, o Guiscardo, é
que entendi o porte escandinavo, os olhos de um azul aguado, os
cabelos de ouro fino de minha impotente nonna. Quem sabe não seria
ela parenta longínqua de um daqueles cruzados, que, como o
gigantesco Boemundo, pareceram deuses louros às morenas princesas de
Bizâncio?
A devoção de minha avó era por uma estranha Virgem negra,
representada num quadro no qual hoje reconheço a reprodução de um
ícone dourado e sombrio. Seu nome, pelo que pude guardar das
palavras do áspero dialeto, soava como Madona de Squeropeceto,
seguramente a mesma raiz grega da protetora dos calabreses.
A casa da nonna, hoje demolida, era um espaçoso sobrado, com balcão,
medalhão com as iniciais da família, balaustrada de ferro batido.
Nos fundos, um vasto terraço onde verdejavam vasos, não de flores,
que não havia tempo para isso, mas de plantas úteis — rubros
tomates, pimenta malagueta, mangericão, louro, salsa — traía a
nostalgia do Mediterrâneo, que quase se esperava ver, do outro lado
da amurada, lá embaixo, onde se estendia o Parque Dom Pedro II. No
fundo do terraço, um enorme forno oval de lenha, onde se assava, nos
grandes dias, o cabrito do Natal ou dá Páscoa.
As comidas mereceriam, nesta evocação, um capítulo à parte. Eram
pantagruélicos, lembrando contos de Pirandello, os banquetes
familiares das festas, com destaque para as massas laboriosamente
feitas em casa, regadas por molhos escariares com porpettas,
braciólas recheadas e algumas folhas esmeraldas de mangericão para
levantar o aroma. Os doces, recheados de massa de grão-de-bico,
castanha e chocolate, eram, dias a fio, mergulhados em tachos de
mel. Os biscoitos de sal e erva doce ou os levíssimos, cobertos de
glacé de açúcar e casca de limão. As carnes preferidas, cabrito
novo, cordeiro, leitão, nunca a vitela dos setentrionais. Dentre as
coisas marinhas, o polvo, que se comia na véspera de Natal. Legumes,
sobretudo a berinjela recheada ao forno e coberta de queijo
parmezzan, os vermelhos pimentões fritos, os tomates em tudo, e de
todas as maneiras, os antipastos de berinjela, pimentão assado e
abobrinha empapados de azeite e folhinhas de hortela, as alice e
azeitonas gigantes, o tempero de orégano, o finòcchio ou erva-doce,
que se comia à sobremesa antes das tortas de Páscoa recheadas de
ricota e grãos de trigo cozidos em leite, das zèppoli de São José
gordas de creme dourado, regados a vinho tinto com fatias maceradas
de pêssego, tudo sabendo a Mediterrâneo, a Oriente, a Grécia.
Numa crônica deliciosa sobre os mistérios da cozinha da Amazônia,
Carlos Drummond de Andrade dizia que os pratos comidos das mãos da
mãe em criança eram a primeira raiz e o último refúgio do
patriotismo. Nesses termos gustativos, criou-se, nos bairros de
imigração, uma nova tradição culinária que veio juntar-se aos vários
ramos regionais da cozinha brasileira. Não se trata apenas de uma
abstrata cozinha italiana unificada, mas variantes das mais
diferentes regiões da Itália, que só em cidades como São Paulo podem
encontrar-se reunidas num só lugar. Em outras zonas de imigração, no
Prata, por exemplo, a oferta abundante de carne barata, alimento
raro na mesa européia da época, em certa medida ofuscou e fez
esquecer a cozinha de origem, o que não sucedeu nos bairros
paulistanos. Nestes, os pratos regionais preservaram-se intactos e
acabaram por conferir à Paulicéia um dos seus traços marcantes, o
centro de uma nova cultura do paladar, diversa ao extremo, onde
coexistem, lado a lado, junto às comidas de quatro Continentes,
rústicas cantinas meridionais, requintados restaurantes tosca-nos ou
lombardos, pizzarias populares, a competição aperfeiçoadora dos
gelati e dos panetones, estes últimos já incorporados à mesa
paulista, como o prêmio especial do domingo.
Por muito tempo, após deixar o Brás, pensei que as festas religiosas
e os costumes que evoquei tivessem desaparecido, vítimas das obras
do metrô e dos freeways desfiguradores do bairro, do qual expulsaram
desumanamente milhares de moradores. Há pouco, porém, quis comparar
minhas memórias com os lugares da infância e retracei o itinerário
das igrejas, centros da vida comunitária do Brás. Descobri então,
com surpresa, que há em marcha uma espécie de renascimento das
tradições do velho bairro, um redespertar talvez da consciência
ítalo-paulistana, após um ocaso de décadas. Na matriz do Bom Jesus
do Brás, na bela igreja de Nossa Senhora da Paz, onde me casei,
evocadora das basílicas cristãs dos primeiros tempos, com os
afrescos de simplicidade giottiana da Pennacchi, na igreja de San
Vito, onde havia quermesse e a Virgem Addolorata continuava a
receber, na sua estranha beleza lânguida e roxa, as preces
românticas dos namorados, em toda a parte, vi sinais de vida e
atividade. Contudo, o que mais me espantou foi na rua Caetano Pinto,
no ponto onde esperava encontrar uma fábrica no lugar da capelinha
cor de anil, topar com a definitiva igreja de Casaluce, pequena mas
decente, terminada um ano antes, não sei por que artes ou milagres.
E não só se reataram alguns fios, como esse, que estavam partidos;
novos também foram tecidos, como na igreja de São Januário, na rua
da Moóca, onde se inaugurou, de uns anos para cá, o que parece ser
uma festa de crescente êxito em honra de San Gennaro.
Nascidos nessas ruas plebéias, alimentados por esses pratos,
crescidos à sombra dessas igrejas, os ítalo-paulistanos deram
matéria aos contos de Alcântara Machado, enquanto amadureciam os
dons e talentos com que haviam de contribuir para a construção da
comum nacionalidade brasileira do século XX.
Tem sido imensa, desde então, a variedade desses dons: no futebol,
onde fundaram os primeiros clubes populares, Corinthians, Palestra
Itália, e não cessaram, em 60 anos, de produzir craques, de Romeo a
Rivelino; na música de Camargo Guarnieri, Francisco Mignone,
Rada-més Gnatalli; juristas como Vicente Rao e Miguel Reale; médicos
como Euríclides Zerbini; cientistas como César Lattes; jornalistas
como Mino Carta, Elio Gáspari, os irmãos Abramo; renovadores da
indústria de comunicações como Casper Libero, em seu tempo e Vítor
Civitta, hoje.
Já se mencionou, no começo destas páginas, o terreno em que, mais do
que nos outros, a energia e a criatividade italianas deixaram marcas
vigorosas: a indústria manufatureira, como empresários, sem dúvida,
mas, com importância ao menos igual, como operários, mecânicos,
líderes sindicais.
É curioso que nas finanças bancárias e na política, dominadas longo
tempo pelas classes tradicionais paulistas, como reflexo do controle
nunca afrouxado sobre a economia latifundiária do café, foram
menores o papel e as oportunidades dos ítalo-brasileiros. No sul é
que se concentram, em geral, os políticos de nomes peninsulares, os
Mene-ghettis, os Guazellis, os Marchezans. Em São Paulo, apesar do
número, nenhum descendente de italianos chegou ao Governo do Estado.
Nem surgiram, desse meio, grandes vocações políticas de expressão
nacional, salvo, em época recente, a figura misto de político e mago
da economia que é o Ministro Delfim Neto.
Mesmo na agricultura do café com Lunardelli, ou da cana-de-açúcar,
com Ometto, o trabalho italiano conquistou espaço, da mesma forma
que ocorreu na renovação da maquinaria da agroindústria açuca-reira
com Dedini e Zanini.
Já na fundação da Universidade de São Paulo, ao lado de franceses e
alemães ilustres, grandes italianos destacaram-se como Wataghin e
Occhialini, na Física; Giuseppe Ungaretti, nos estudos literários;
Fantappié e Albanese, na Matemática; Alfonso Bovero, na Medicina.
Mais tarde, exilados do talento como Tullio Ascarelli, no Direito
Comercial, Tuilio Liebman, no Processual, em São Paulo, Giorgio
Mortara, na renovação dos estudos estatísticos, no Rio de Janeiro,
mantiveram alto o prestígio da scholarship italiana no Brasil.
O após guerra trouxe impulso novo a esse contínuo influxo cultural
da Península para os centros brasileiros. Foi a época do mecenato de
Franco Zampari e seu papel central na modernização do cinema (onde
já se ilustrara em Minas, Humberto Mauro), através da fundação dos
estúdios da Vera Cruz e na transformação do teatro nacional, com a
organização do Teatro Brasileiro de Comédia. Para essa obra, iriam
concorrer diretores, atores e cenógrafos notáveis como Adolfo Celli,
Ruggiero Jacobbi, Luciano Salce e o de influência mais duradoura,
Gianni Ratto, que se deixou ficar entre nós.
Nas letras, nunca faltou o talento italiano, desde os tempos
coloniais em que Antonil (o jesuíta João Antonio Andreoni) escreveu
Cultura e opulência do Brasil De Antonil e Raul de Leoni, de Menotti
del Picchia, Sud Menucci e Dante Milano a Guido Wilmar Sassi, Dalton
Trevisan, Gianfrancesco Guarnieri, Décio Pignatari, na crítica de
literatura ou teatro com Agripino Grieco e Sábato Magaldi, houve
sempre nomes italianos na evolução literária brasileira. E, no
entanto, tem-se a impressão de que esse é o domínio por excelência
dos luso-brasileiros, donos originários da fala.
Em contraste, por exemplo, com a dimensão relativamente modesta que
ocupam nas letras, os italianos ou ítalo-brasileiros alcançam nas
artes plásticas posição de realce nuito mais que proporcional ao seu
número. O arquiteto Landi, Eliseu Visconti, Henrique e Rodolfo
Bernardelli, Anita Malfatti, Vitor Brecheret, Enrico Bianco, Candido
Portinari, José Pancetti, Bruno Giorgi, Alfredo Volpi, Aldo Bonadei,
Fúlvio Pennacchi, Arcângelo Ianelli, Norberto Nicola, Maria Bonomi,
Odetto Guersoni, Hércules Barsotti, Pietrina Checcacci, Ivald
Granato, Cláudio Tozzi, Alfredo Ceschiatti, a lista é infindável. Se
a ela se somam os nomes de Ciccilo Matarazzo, a cujo mecenato
ficamos a dever a Bienal de São Paulo e a base da coleção do Museu
de Arte Contemporânea da mesma cidade e o de Pietro Maria Bardi,
cuja obra admirável de organizador do Museu de Arte de São Paulo só
tem paralelo no seu incansável trabalho de crítico e animador
cultural, não há como negar que uma afinidade especial deve estar na
raiz dessa participação verdadeiramente espantosa em quantidade e
qualidade.
Não pretendendo ser um levantamento exaustivo como o Italianos no
Brasil, de Franco Cenni (Martins-USP, 2ª ed. 1975), este inventário
serve, ao menos, para dar uma idéia da magnitude da contribuição
italiana à vida brasileira. Um balanço mais sistemático teria que
partir das explorações marítimas de Américo Vespucci e não poderia
deixar de fora o sangue italiano dos fidalgos Cavalcanti, família
que é legião no Nordeste ou, no mesmo Nordeste, o aporte dos
soldados napolitanos de Bagnuoli na luta contra os holandeses. Não
omitindo também, no capítulo do inconformismo social e do amor à
liberdade, o sacrifício de Libero Badaró, em São Paulo, a
participação de Garibaldi nas revoluções do Sul, a utopia dos
anarquistas da Colônia Cecília.
Mais, porém, que dos feitos notáveis dos homens célebres, a história
da imigração foi tecida com a trama silenciosa e obscura de milhões
de vidas só conhecidas dos próximos.
Nem tudo foram flores nesta história, na qual não faltaram
humilhações, explorações impiedosas do trabalho humano, desprezo ao
carcamano, perseguições ao inimigo da Segunda Guerra Mundial, como a
proibição do uso público da língua, a exigência xenófoba de abandono
dos nomes em que figurasse a Itália. Muita gente, não haja ilusões,
traz até hoje as cicatrizes dessa época.
Mas, para além de toda dor, ficou o muito que os italianos deram à
terra de adoção. Assim como aconteceu com o impacto da África, a
marca da Itália na alma brasileira não deve tanto ser procurada em
fenômenos tópicos externos, de fácil identificação: cozinha, música,
objetos de arte. O que conta, realmente, é o que ficou impregnado na
própria essência do ser brasileiro, na fala do paulistano, no
domínio do gesto, na energia criadora, na alegria diante do belo, no
inconformismo ante a iniqüidade social, em tudo que é intangível,
impossível de quantificar e medir, no patrimônio existencial do povo
brasileiro.
Já não se pode mais definir a experiência humana deste povo sem
levar em conta a componente italiana, ao lado da africana, da
indígena, da portuguesa, da alemã, da dos demais povos que mesclaram
o sangue com o nosso.
É pena que nenhum dos ítalo-brasileiros mais próximos da fase
heróica da imigração tenha dado, através da linguagem da arte, rosto
e voz aos anônimos milhões de italianos, como acaba de fazer para os
japoneses a nisei Tizuka Yamasaki no filme Gaijin, que dizem belo e
pungente.
Esses contos, é evidente, respondem emocionalmente a uma inspiração
diversa. Mas, em que pesem os limites e diferenças, tiveram o mérito
de valorizar o popular, o homem qualquer, o pequeno e o pobre, que
do pouco fizeram muito, da penúria extraíram riqueza humana, da
diversidade que representavam e da que encontraram no Brasil,
souberam ajudar a moldar a unidade básica do povo brasileiro.
Cada um traz dentro de si a sua história da imigração. Como este não
é um ensaio crítico, mas um depoimento pessoal, que me seja
permitido contar a minha.
Para mim, a imigração italiana não é o pitoresco de Alcântara
Machado, que, confesso, me provoca reação ambivalente, misto talvez
de ternura com uma ponta de agastamento, a mesma reação que causa em
Alfredo Bosi e, suspeito, em qualquer outro ítalo-brasileiro. Menos
ainda é a riqueza dos magnatas de ontem e de hoje, o êxito cultural
dos artistas.
É, antes de tudo, a herança de um homem que nunca conheci,
napolitano de velha cepa, Pietro Jovine, cujos olhos azuis há muito
extintos, me fitam às vezes, do fundo de um retrato amarelecido.
Soldado dez anos na Sicília, cujo dialeto gostava de falar, da
profissão evangélica de carpinteiro, seu sonho de fazer a América
foi cedo destroçado por um acidente de trabalho, o qual, jovem
ainda, deixou-o cego e paralítico, num tempo em que não havia
aposentadoria ou seguro profissional.
Teve de resignar-se, nos anos que lhe restaram, a ser sustentado
pela mulher, Cristina, leve e diáfana, de cabelos prematuramente
embranquecidos, atormentada pela asma na umidade dos invernos
paulistas, nobreza e dignidade e recato inigualáveis, apesar do
trabalho duro como pespontadeira de sapatos, tarefa artesanal que se
podia fazer em casa.
Em meio a tudo isso e com o sacrifício da filha mais velha, criaram
cinco filhos, as mulheres portando os nomes dos atributos da Virgem,
Concètta, Annunciata, Assumta, os homens Francisco e Ignacio,
educados na retidão, na devoção ao trabalho, no amor à cultura e à
justiça. Esse homem que, medido por padrões humanos, não conheceu
senão fracasso, pobreza e obscuridade, era meu avô materno. Quando
penso na imigração, vejo-o como me descreveram minha avó e minha
mãe, no instante em que, de encontro ao seu destino, partiu de
Nápoles, que tanto amava e nunca mais havia de rever. Ao afastar-se
lentamente o navio do cais, meu avô Pietro assobiava do convés e seu
único irmão lhe respondia de terra. Anoitecia e aqueles sons agudos
eram fios tênues, frágeis, que se buscavam, se queriam amarrar à
terra, até que a distância e o ruído das vagas os fizeram silenciar.
É essa a imagem que trago dentro de mim e não se apaga. Terá valido
a pena? Só a Deus cabe responder.
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