Quando minha mãe morreu, meus irmãos encontraram entre seus papéis todas as cartas que eu lhe havia escrito desde que deixei São Paulo para fazer o exame de ingresso no Itamaraty. Estavam cuidadosamente guardadas dentro de uma pasta de couro verde, presente de um de meus irmãos, na qual ela havia feito gravar em letras douradas “Meu filho diplomata. ” A primeira das cartas, que eu tinha esquecido totalmente, era datada do Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1958.
Nela, eu relatava a primeira prova eliminatória, de Português, cujos resultados não eram conhecidos ainda, mas que dizimaria os candidatos, reduzindo-os de 116 a punhado de pouco mais de 20. Na carta, eu também registrava, deslumbrado, minha descoberta do mundo fascinante do Itamaraty e da diplomacia. Com inexperientes 21 anos, crescido num dos cantos mais pobres do operário bairro do Brás dos anos 30 e 40, entre as ruas Caetano Pinto e Carneiro Leão, ao lado do Gasômetro, eu nunca havia sido exposto a um cenário tão majestoso e imponente.
O exame havia sido num sábado, começando às 10 horas da manhã, no salão nobre da Biblioteca neo-clássica, com todas as portas de vidro abertas ao lago onde deslizavam os cisnes. Ao fundo da aléia de palmeiras imperiais, os estudantes pensativos se inspiravam na doçura em frente do casarão cor-de-rosa do velho palácio dos Condes de Itamaraty. A manhã era plácida, luminosa, mas não muito quente pois soprava leve brisa.
Esse ideal cenário físico lá fora era harmoniosamente completado pelos cuidados atenciosos de que éramos objeto no magnífico interior da Biblioteca mandada edificar ao tempo de Otávio Mangabeira. Acostumado à massificação, já naquele início da expansão da universidade pública, do vestibular à Faculdade de Direito de São Paulo, à impessoalidade e distância burocrática dos contactos com o secretariado das Arcadas ou da Faculdade de Filosofia na rua Maria Antonia, não esperava que os jovens diplomatas incumbidos de supervisionar as provas nos tratassem de quase colegas, de igual a igual, como se o exame não passasse de formalidade sem importância e estivéssemos já assegurados do ingresso.
Meu encantamento chegou ao auge quando, em certo momento, contínuos de luvas e uniformes brancos com botões dourados nos serviram café em elegantes taças de bordas de ouro com as armas da República. Foi amor à primeira vista, jamais desmentido ao longo dos 36 anos que eu haveria de passar no aconchego do Itamaraty, que o chanceler Azeredo da Silveira dizia ser, na verdade, um orfanato pelo carinho familiar com que tratava os funcionários.
Se me demorei em evocar meu exame foi, primeiro, para introduzir o início de nervosa sequência de provas ao longo de quase dois meses, que se encerrariam com nosso encontro com João Guimarães Rosa. Tive também para isso outro motivo. É que, ao ler o belo e sugestivo ensaio de meu colega Felipe Fortuna, Guimarães Rosa, Viajante, publicado na coletânea O Itamaraty na Cultura Brasileira ( Instituto Rio Branco, org. Alberto Costa e Silva, 2001, p. 270-285), fiquei impressionado com a semelhança da situação e sensações que eu mesmo vivera com as de outro jovem que me precedera um quarto de século antes, um médico de 26 anos de idade, vindo como eu de outro estado, aprovado em 1934 naquele concurso de ingresso ( com a diferença de não existir, na época, o Instituto Rio Branco no qual estávamos entrando em l958 ).
Ao escrever à mãe, em carta de 7 de julho de 1934, que tirara o segundo e não o primeiro lugar devido a ter perdido a calma nas provas escritas iniciais, Guimarães Rosa explicava que ficara “estonteado com o ambiente barulhento do Rio de Janeiro, e com o luxo magnificente do Itamaraty” (grifado por mim). Em carta datada de um dia antes, descrevia a dificuldade dos exames em termos muito parecidos aos que vim a encontrar em meus próprios relatos a meus pais:
“De 57 (candidatos), só 10 foram habilitados (…) Desses 10, talvez seja eu o único que não esteve ainda na Europa; além disso, posso garantir que esse Concurso é o mais difícil que se processa no Brasil (…) Assim, estou satisfeitíssimo, adquiri mais confiança em mim mesmo, e espanei os brasões…”
Comenta Felipe Fortuna que a atitude de Rosa não estaria isenta de uma ponta de ressentimento social (a comparação com os demais candidatos que já haviam estado na Europa, a referência a espanar os brasões). Há algo disso mas caberia talvez interpretação mais indulgente: a da aquisição da auto-confiança, a justificável satisfação pela ascensão social. Ao menos, foi assim que me identifiquei ao sucesso do jovem mineiro pois lembro minha reação similar ao ver, nos orais de línguas, que os concorrentes de impecável pronúncia tinham todos estudado em Londres e Paris, alguns, filhos de diplomatas, tendo sido mesmo educados nesses idiomas.
Até o impacto estético e espiritualmente tranquilizador do lago está presente nos escritos roseanos recolhidos em Ave Palavra, conforme este trecho transcrito por Heloisa Vilhena de Araujo em Guimarães Rosa: Diplomata:
“No seu dia a dia, porém, sem aparato (o lago do Itamaraty) rende o quadro certo e apropriado à Casa diplomática. Porque de sua face, como aos lagos é eternamente comum, vêm indeteriorável placidez, que é reprovação a todo movimento desmesurado ou supérfluo. Também, uma vez, em 1935, e acaso associado à lembrança de outro lago, forneceu imagem imediata a um dos mais desvencilhados espíritos que jamais nos visitaram: Salvador de Madariaga. Que concluindo, ali, no auditório da Biblioteca, memorável conferência sobre ‘Genebra’ – id est a Sociedade das Nações ou qualquer organização que se proponha realizar alguma harmonia entre os povos – comparou que a mesma seria, na vida internacional, o que a água é na paisagem: mais luz, por reflexão, e o calmo equilíbrio da horizontalidade.”
O concurso de ingresso de Guimarães Rosa no Itamaraty vem narrado de forma saborosa no livro de seu tio Vicente Guimarães, Joãozito – A infância de João Guimarães Rosa, em boa hora reeditado (São Paulo: Panda Books, 2006, pp. 96-99). Tendo chegado ao Rio pelo trem noturno sem prevenir os parentes, o futuro diplomata metera-se num hotel de políticos mineiros, onde trancou-se no quarto para estudar vinte horas seguidas. De manhã, queria descansar, mas o cérebro continuava à toda. Pede socorro ao tio, que corre ao hotel e, ao entrar no quarto, descreve cena memorável:
“Encontrei meu sobrinho nu, deitado, coberto por um lençol, comendo ostras e na mão tendo um livro policial. ”
Testemunha ocular, Vicente relata do exame oral episódios que levaram o próprio candidato a confessar na mesma carta à mãe acima citada: “banquei um pouco o cabotino, para impressionar” (carta de 7 de julho de 1934, em Vilma Guimarães Rosa, org., Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 281). Em matéria de cabotinismo, veja-se, por exemplo, a prova de Francês:
“Que o senhor conhece da Literatura Clássica Francesa? ’ Resposta: ‘Toda’…. ‘Desde quando o senhor lê Francês? ’ ‘Os clássicos, comecei a ler aos nove anos. ”
Indagado sobre o que havia de notável na principal obra de certo autor, o examinando “ (e)xcedeu… (r)eproduziu de cor a página mais bonita do livro, aquela que o celebrizara. ” No curioso estilo contagiado pelas inversões e inovações reseanas, o parente coruja salienta o “ entusiasmo dos examinadores. Chegaram a levantar-se de seus lugares e aproximar-se do examinando, perdendo nenhuma de suas respostas e exposições…Ao terminar a última prova, a platéia iniciou palmas, imediatamente interrompidas por psius, para não prejudicar o candidato com a invalidação do exame” (Vicente Guimarães, ob. cit., pp. 97, 99).
O triunfo final ganha mais realce pelo contraste com o ponto de partida de Joãozito, “desconhecido, modesto, sem nenhum influimento político ou outro qualquer”.
Felipe Fortuna destaca também a consagração antecipatória de Rosa por essa via da erudição ostentada no exame. Aos sentimentos que lhe desperta o sucesso, aplica adjetivos como orgulhoso, vencedor, envaidecido: “Sozinho no Rio de Janeiro, pressionado pelos examinadores, o êxito no concurso revelou uma face imodesta do filho de dona Chiquitinha e seu Florduardo”. Conclui que o aprovado encontrara profissão na qual as qualidades intelectuais, longe de constituirem estorvo, passavam a ajudar suas ambições (Felipe Fortuna, ob. cit., p. 272).
É interessante aproximar esse verdadeiro rito de passagem pelo qual começa a manifestar-se ao mundo o talento escondido na província de episódio similar vivido, um século antes, por jovem exilado de 24 anos, o mais tarde presidente e ensaista argentino Domingo Faustino Sarmiento, na época da história supervisor da mina de Copiapó, no Chile. Eis como o grande argentino evoca a situação, no estilo que lhe era característico e na ortografia então vigente no Chile:
“Una noche encontramos hospedado a un señor Codecido, pulcro i sibarita ciudadano que se quejaba de las incomodidades i privaciones de la jornada. Saludáronlo todos con atencion, toquéme yo el gorro con encojimiento, i fuí a colocarme en un rincon, por sustraerme a las miradas en aquel traje que me era habitual, dejándole ver, sin embargo, al pasar mi tirador alechugado, que es la pieza principal del equipo. Codecido no se fijó en mí, como era natural con un minero a quien sus patrones consentian que los acompañase, i a haber yo estado mas a mano, me habria suplicado que le trajese fuego, u otra cosa necesaria. La conversacion rodó sobre varios puntos, discreparon en una cosa de hecho que se referia a historia moderna europea, i a nombres jeográficos, e instintivamente Carril, Chenaut, y los demas, se volvieron hácia mí, para saber lo que habia de verdad. Provocado así a tomar parte en la conversacion de los caballeros, dije lo que habia en el caso, pero en términos tan dogmáticos, con tan minuciosos detalles, que Codecido abria a cada frase un palmo de boca, viendo salir las pájinas de un libro de los labios del que habia tomado por apir. Esplicáronle la causa del error en medio de la risa jeneral, i yo quedé desde entonces en sus buenas gracias” (Domingo Faustino Sarmiento, Recuerdos de provincia, apud Bernardo Ricupero, O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830-1870), São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XXXIX).
No livro onde colhi a significativa história, o autor comenta que as roupas e o conhecimento são elementos centrais em narrativa na qual estaria dissimulado quase um conflito entre eles, no sentido de que, se as roupas sugerem qual é a posição hierárquica de cada um, o conhecimento é que indica quem deveria, na verdade, ocupar a posição dominante na escala social, no caso o autodidata Sarmiento. “ (O) conhecimento transforma Sarmiento… de obscuro empregado, passa a ser alguém ilustre, um cavalheiro como os demais presentes na sala. ” (Bernardo Ricupero, ob. cit., pp. XXXIX, XL).
Para sociedades em transição do predomínio dos estamentos para o de classes, observa, o conhecimento não pode ser desinteressado e acaba por adquirir status de sinal, ao mesmo tempo, de prestígio e de mérito. Cita, a respeito, o texto mimeografado de Antonio Candido, apresentado em seminário sobre Richard Morse, em Washington e intitulado “Literatura: Espelho da América? ” Em países e continente nos quais a autonomia do campo intelectual era incipiente e subordinada ao político, os políticos eram quase sempre poetas, romancistas, ensaistas, historiadores, como boa parte das figuras centrais do romantismo no Brasil, na Argentina, no Chile.
É o que afirmava Antonio Candido: “…a literatura foi frequentemente uma atividade devoradora. Quero dizer que durante a formação nacional dos nossos países quase tudo devia passar por ela, e por isso ela foi uma espécie de veículo que parecia dar legitimidade ao conhecimento da realidade local”. Os literatos que não se sentiam, no Brasil, com vocação para a política, também “atividade devoradora”, tinham uma opção: o emprego público em geral, como Machado de Assis, Lima Barreto e legiões de outros ou o Itamaraty em particular, mais atrativo para alguns, entre outras razões, pelo apelo da outra margem do mar, pela possibilidade de viajar, de viver em outras terras e de ser pago para isso.
Era o caso de Rosa, que, lembra Fortuna, havia escolhido em concurso literário o pseudônimo de Viator, “o viajante, o que vai pelas vias e veredas, o andarilho”. O obscuro médico provinciano de Itaguara e Barbacena, cujas roupas certamente deveriam já distinguí-lo dos demais candidatos viajados pela Europa e habituados ao cenário “estonteante” do Rio de Janeiro, encontra no concurso o meio de revelar, pela superioridade da erudição e da cultura, que fazia jus ao mandarinato do Itamaraty.
Na carreira, poderia dizer como o Conselheiro Aires: “…não fiz tratados de comércio nem de limites, não celebrei alianças de guerra”. Os colegas diplomatas que lhe dedicaram estudos – o ensaio de interpretação psicológico-filosófica de Heloisa Vilhena de Araujo, a penetrante análise literária da viagem como elemento do destino humano de Felipe Fortuna – esforçaram-se em valorizar, na medida justa e possível, a contribuição propriamente diplomática de Guimarães Rosa.
É claro, contudo, que não se deve forçar essa nota além da conta. Magra, de fato, é a colheita de textos burocráticos que se destacam pelo valor estritamente profissional, não apenas pela vigorosa originalidade de estilo que rompe os cânones dos manuais de redação, tal como havia ocorrido antes com o célebre relatório de Graciliano Ramos sobre a prefeitura de Palmeiras dos Indios. A rigor, o único grande texto diplomático roseano é o minucioso estudo e refutação das queixas limítrofes paraguaias consubstaciado na Nota No. 92, de 25 de março de 1966, da Embaixada do Brasil em Assunção, copiosa e exaustiva nota-fleuve de 155 parágrafos na qual o então Chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty demonstra sua competência como diplomata.
Que ele, apesar de haver realizado a tarefa com impecável consciência de funcionário, a tenha, no fundo, considerado “maçada grande”, como diria o Barão do Rio Branco, fica claro na carta ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, transcrita no trabalho de Heloisa Vilhena: “Pois, Você sabe que sou aqui o Chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras; e deve ter acompanhado nos jornais o palpitante caso de divergência com o Paraguai, o assunto de Sete Quedas. Imagine, pois, o que comigo sucedeu, de junho do ano passado, até julho deste. Foi uma absurda e terrível época, de trabalho sem parar, de discussões, de reuniões, de responsabilidades. Várias vezes, tive de trabalhar aqui no Itamaraty até as 5 horas da manhã ……e comparecer no outro dia já às 9, para reuniões que duravam o dia inteiro. Tudo isso, sob a circunstância de ser, entre os 80 milhões de brasileiros, o que é pago para cuidar do assunto, debaixo do peso dele. E com a saúde – como Você sabe. E com o visceral “medo de errar”, a necessidade compulsiva de cuidar de todos os detalhes, a lentidão meticulosa do mineiro da roça, de terra onde os galos cantam de dia. Assim, fiquei fora e longe de tudo o mais, nem me lembrava que eu era Guimarães Rosa, não respondi às cartas das editoras estrangeira, perdi dinheiro, sacrifiquei interessantes oportunidades, adoeci mais, soterrei-me (grifado por mim, Heloisa Vilhena de Araujo, ob. cit., pp. 21, 22).
Não é segredo para ninguém no Itamaraty que a velha Divisão ou Serviço de Demarcação de Fronteiras era considerada, em circunstâncias normais, um remanso apropriado para quem tem coisas mais interessantes ou prementes para fazer. Tanto assim que chegou, em certos momentos, a desaparecer do organograma do ministério. Não que falte trabalho em fronteiras, mas o essencial do serviço era e é feito pelas duas Comissões Demarcadoras de Limites, a 1a., sediada em Belém, responsável pela fronteira norte e a 2a., com sede no Rio de Janeiro, com jurisdição sobre a linha limítrofe da Bolívia ao Chuí. Ambas confiadas a coroneis reformados do Exército, especialistas em topografia, medições, aposição ou reposição de marcos etc. Sei do que falo porque fui um dos sucessores de Rosa, chefiando a Divisão, interinamente, durante mais de um ano, quando meu principal trabalho era a direção da Divisão da América Meridional-II e o titular de Fronteiras se encontrava em prolongado serviço provisório na Nicaragua.
Por conseguinte, quem escolhia chefiar a Divisão durante onze anos, conforme aconteceu com o escritor, era como se abrisse mão de fazer carreira por ter algo muito mais importante a que dedicar o escasso e fugitivo tempo. Foi falta de sorte que, em meio a essa sossegada década, de repente rebentasse uma das raras, raríssimas disputas limítrofes brasileiras desde que o Barão deixou definidas em negociações ou arbitragens praticamente todas as fronteiras (aliás, a do Paraguai foi das poucas que estavam já resolvidas antes dele).
A imensa maioria dos escritores que tiveram na diplomacia uma base garantida de segurança material a partir da qual puderam construir obra literária sabiam da impossibilidade de devotar igual tempo e esforço ao serviço e à criação. João Cabral de Melo Neto, com quem convivi quando, após a renúncia de Jânio Quadros, ficou meses de 1961, em Brasília, aguardando que se criasse o prometido Consulado em Sevilha (João havia sido chefe de gabinete de seu primo, o efêmero ministro da Agricultura de Jânio, Romeiro Cabral da Costa) disse-me isso de modo explícito. Perguntei-lhe um dia porque não se candidatava a alguma embaixada, em vez de esperar infindavelmente pela abertura do consulado. Respondeu-me que sempre preferia os consulados porque lhe permitiam desligar-se fisica e mentalmente do trabalho ao final do expediente, em geral curto. Do contrário, em funções diplomáticas mais exigentes e prestigiosas do ponto de vista da carreira, não teria tempo, material e espiritual, para a poesia.
Os dois, Cabral e Rosa, escolheram certamente a melhor parte, que não lhes será tirada. Quem lembra ainda, por exemplo, os nomes dos ministros ou embaixadores que gozaram dos “quinze minutos de notoriedade” dessa época? O caso do autor de Sagarana é até mais notável posto que, por duas vezes, foi ele chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura, lugar cobiçadíssimo pelos carreiristas por ser o caminho mais seguro para promoções rápidas e carreira curta. Logo após seu ingresso no concurso, ainda sob a ilusão da descoberta de sua definitiva vocação, havia confidenciado em carta ao pai:
“Tenho esperança de fazer carreira breve, e para isso empregarei todos os meus esforços, pois penso que descobri minha verdadeira vocação” (carta do Rio de Janeiro de 21 de agosto de 1934, Vilma Guimarães Rosa, ob. cit., p.149).
Para os profissionais, carreira breve é chegar logo a embaixador a fim de poder chefiar no exterior embaixada prestigiosa que renda, ao mesmo tempo, fama, conforto e cabedais. Paradoxalmente, à medida que se aproxima dessa meta, Rosa perde interesse nela, não sai mais do Brasil após oito anos apenas de vida no estrangeiro e morrerá embaixador sem nunca ter tido embaixada. Da mesma forma que em relação à Academia Brasileira de Letras, na qual afinal toma posse para morrer em seguida. Seu destino parece o de Moisés: chegar à terra prometida, mas só avistá-la do alto da montanha. A não ser que tenha vislumbrado outra e melhor Canaã mais longe.
É o que se suspeita ao ler a entrevista que deu a seu tradutor alemão, Gunther W. Lorenz:
“Viajei pelo mundo, conheci muita coisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escrever não me ocupava mais. Assim se passaram dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura” (apud Felipe Fortuna, ob. cit., p. 271).
Foi a sorte da nossa turma de candidatos ao Itamaraty que ele tivesse tomado a decisão de permanecer na Divisão de Fronteiras, a partir de 1956 até sua morte em 1967. Um ou dois anos antes do nosso exame, que foi em 1958, a prova de Cultura Geral havia suscitado controvérsia na imprensa. Várias das questões pareciam perguntas de almanaque ou dessas ciladas que se armam contra candidatos a prêmios milionários na televisão. Uma delas era a famigerada indagação: para que lado, o direito ou o esquerdo, está virado o bico do pelicano que ornamenta a capa da edição princeps de “Os Lusíadas”? Era prato cheio para as colunas dos jornais, que obviamente se esbaldaram.
Diante do escândalo, o Instituto Rio Branco convidou João Guimarães Rosa a incumbir-se, junto com o folclorista e historiador Renato de Almeida, da prova de Cultura Geral, a última e não-eliminatória, apenas classificatória, da longa série, que durava quase dois meses. Não sabíamos àquela altura que, anos antes, em 1952, o autor de Grande Sertão havia apresentado ao Diretor do Instituto Rio Branco sugestões para o programa do concurso, com ênfase na parte relativa justamente à Cultura Geral.
Nas notas que encaminhou ao Diretor, reproduzidas no estudo de Heloisa Vilhena, partia-se do objetivo da prova, que era o de “apreciar…também os conhecimentos – científicos, artísticos, eruditos, ilustrativos etc – adquiridos seja mediante aprofundamento extraordinário nas matérias dos Cursos Ginasial e Colegial, seja em cursos outros, seja extracurricular e autodidaticamente, através de leituras e outros meios de informação e enriquecimento do espírito”. Tais conhecimentos, especificava-se, deveriam ser “suplementares ou complementares, transcendentes da rotina escolar, bem assimilados e sedimentados”. O resultado esperado é que tivessem contribuído para “a formação do candidato e (fossem) resultantes de curiosidade intelectual e capacidade mental, do gosto pela indagação objetiva ou especulativa, de vocação cultural e consciência humanística”.
Insistia-se em que o objetivo do exame era a aferição do “ saber gratuito e da cultura de informação, básica, variada e pragmaticamente utilizável”, evitando-se tudo que induzisse ao “estudo utilitário, para exame, as leituras apressadas, adrede feitas, a memorização artificial interessada” (Heloisa Vilhena de Araujo, ob. cit., p. 29).
Tendo assim fixado a teoria do exame de Cultura Geral, vejamos como se saíu o escritor-pedagogo ao ter de convertê-la em prática. Foi quase há meio século mas recordo bem das circunstâncias. Estávamos exaustos após a sequência infindável de provas escritas, dos dificílimos orais de língua, do nervosismo de esperar as notas, de apresentar pedidos de revisão das correções. Os que tínhamos sobrado das eliminações formávamos um grupinho rarefeito de 13 ou 14, já com incipiente solidariedade de grupo nascida da ansiedade e do sofrimento em comum.
À medida que avançava o ano, aumentava o calor e nós, mergulhados em livros, mal podíamos acompanhar de relance nas manchetes dos jornais tudo o que nos oferecia de surpresas a história, o retorno ao poder de De Gaulle, o grande “salto para a frente” na China, já naqueles distantes dias o Iraque, onde o rei Faiçal e sua família haviam sido massacrados, no mesmo mês que assistira à intervenção militar norte-americana no Líbano. Nada de novo sobre a face da Terra….
No Brasil, Juscelino, constantemente acossado por Carlos Lacerda, a “banda de música” da UDN no Congresso, os brigadeiros e coroneis golpistas de Aragarças e Jacaréacanga, chegava à metade triunfante dos “cinquenta anos em cinco”, das metas, da construção de Brasília, da ruptura com o Fundo Monetário. Era a época de Lúcio Costa e Oscar Niemayer, das colunas de Drummond e Bandeira no “Jornal do Brasil” ou no “Correio da Manhã”, das crônicas de Rubem Braga, da bossa nova de Jobim e Vinícius. Clarice Lispector preparava Laços de Família e Maçã no Escuro. Depois dos dez anos que se seguiram a Sagarana, Rosa publicara, em 1956, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.
Foi ele, aliás, já escritor consagrado, chefe de divisão com autoridade na Casa, que comandou nosso exame. Renato de Almeida estava presente, pequeno, roliço, sorridente, mas não me lembro de que tivesse tido algum papel. Guimarães Rosa apresentou-se como o vemos nas fotografias, de gravata borboleta de bolinhas, paletó bege, óculos de lentes grossas. Indicou-nos no quadro-negro os dois temas escolhidos. O primeiro eram os versos de Tomás Antonio Gonzaga:
“O sábio Galileu toma o compasso
E, sem voar ao céu, calcula e mede,
Das estrelas e sol,
O imenso espaço”.
O segundo era uma frase do católico Gustavo Corção, de quem hoje ninguém mais fala, mas que escrevera na época livros notáveis, “Lições de Abismo”, “A Descoberta do Outro”:
“Como explicar a desordem do mundo? ”
Recusou dar explicações ou conselhos. O desafio de cultura consistia justamente na maneira de enfrentar e resolver o enigma dos dois textos. Só agora, ao preparar esta evocação daquela jornada, vim a tomar conhecimento, pelo livro de Heloisa Vilhena, de que, nas notas de 1952 ao Diretor do Instituto Rio Branco, se achava decifrada a chave do exame:
“….o exame de Cultura Geral deverá permitir sejam levadas em conta as afirmações de erudição em quaisquer ramos do saber humano, prestando-se além disso a medir, de cada examinando, não só o cabedal de informações, mas também, tanto quanto possível, a coordenação das mesmas e sua dinâmica capacidade associativa…” E, mais significativamente: “convém que as dissertações se dêem sobre temas de caráter geral, que permitam, pela variedade de seus aspectos, o máximo de ilações, associações e ilustrações, num tratamento revelador da pluralidade de conhecimento do candidato”(Heloisa Vilhena, ob. cit., p. 30).
Não sei mais o que escrevi, nem se essas provas sobrevivem ainda nos arquivos do Rio Branco. O exame, exclusivamente escrito, foi comprido. “A prova deverá ser de duração suficientemente longa, num mínimo de tempo de 5 horas”, rezavam as notas, porque “à Cultura inerem as condições de meditação e calma”. Guardo lembrança vaga de que não esgotei o tempo mas cheguei perto.
Quando penso hoje no exame, o único de que conservo melhor memória de todas aquelas provas, vejo que a intenção do examinador provavelmente seria a de contrastar a ordem física do universo, na era em que existiam, todavia, as certezas da astronomia newtoniana, com a desordem do universo moral. Terei percebido o vínculo naquele momento? Quem sabe?
Apenas lembro que meu texto respirava as influências católicas francesas que me formaram, Bernanos, Mauriac, Maritain, Teilhard de Chardin, os grandes mestres da espiritualidade beneditina; no Brasil, a marca preponderante de Alceu de Amoroso Lima. Diversas vezes citei Camões, as redondilhas “Sobre os rios que vão”, por exemplo:
“Não basta a minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição”.
O que mais chamou a atenção do examinador foi o verso também de Camões com que terminei a dissertação:
“Mas o melhor de tudo é crer em Cristo”.
Não era das redondilhas citadas nem de poema conhecido. Tanto que Rosa veio falar comigo – ele havia tido tempo de olhar o começo e o fim da redação – para questionar onde havia eu pescado aquela pérola. Hoje, não saberia o que responder, mas naquele momento, a erudição pronta e infalível de quem há meses queimava as pestanas no estudo ditou-me a resposta na ponta da língua. Terá ele lembrado do cabotinismo do seu próprio exame, da vaidade ingênua com que enfrentara os examinadores? Tenho boas razões para suspeitar de que fluíu entre nós corrente de simpatia e afinidade, seja pela recordação de outro provinciano deslocado no cenário de luxo da Biblioteca, seja devido às referências religiosas e místicas de texto com algum apelo para quem vivia sempre em busca da “terceira margem do rio”.
No Itamaraty, via-o às vezes de longe, ouvia as histórias que dele se contavam, o famoso caderninho onde anotava as palavras e expressões pouco usuais em meio à reunião dos países amazônicos em Manaus, o gosto de escrever de pé naquelas escrivaninhas inglesas dos contadores de antigamente. Os caminhos da carreira nos separaram; logo após a conclusão do curso do Rio Branco, voluntariei-me para trabalhar em Brasília. Servia no exterior, em Buenos Aires, quando ele morreu.
De Rosa, o que me ficou foi aquele encontro fugaz de algumas horas, na Biblioteca do Itamaraty, o diálogo do examinador curioso por citação que não conhecia e o candidato que reproduzia, sem saber, a ponta de desafio do provinciano, médico obscuro de Barbacena, exilado capataz da mina de Copiapó, que parte à conquista do mundo armado apenas de leituras, erudição, conhecimento, esboço de cultura.
Na procura da sempre-fugidia terceira margem do rio, o viajante descobriu, como lembra Felipe Fortuna, que viajar pelo sertão é a mesma coisa que viajar pelo mundo. Deixou-se ficar no país profundo do qual na verdade não tinha jamais saído. Descobriu também que fazer carreira breve valia pouco diante do mundo que podia criar com a palavra. E soube dar a resposta certa à pergunta do Evangelho:
“De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder sua alma? ”
Publicado em 2006 na edição especial dedicada aos 60 anos de Sagarana e aos 50 de Grande Sertão: Veredas pelo Instituto Moreira Salles.