Com a morte do embaixador João Hermes Pereira de Araújo desaparece o último representante de uma tradição viva de diplomacia brasileira no Rio da Prata, que remontava em linha direta aos grandes diplomatas e estadistas da monarquia. Não que ele fosse anacrônico em qualquer sentido da palavra. A ele e a seu antecessor na chefia do Departamento das Américas do Itamaraty, embaixador Expedito de Freitas Rezende, se deve a formulação e paciente montagem do arcabouço político-jurídico que possibilitaria a construção e operação da Usina bilateral de Itaipu com o Paraguai. Coube-lhe também posteriormente o mérito principal de ser o artífice da solução definitiva do prolongado e complexo contencioso que opôs o Brasil à Argentina na questão dos aproveitamentos hidrelétricos dos rios internacionais de curso sucessivo na Bacia do Prata. Nada mais moderno que a criação de um mecanismo que já funciona há mais de três décadas e constitui peça insubstituível da matriz energética limpa e renovável do Brasil.
Uma das qualidades que justamente honrava João é que, embora imerso até a raiz dos cabelos na tradição histórico-cultural da diplomacia brasileira na região, ele jamais partilhou o fundo de desconfiança ou mesmo de animosidade em relação à Argentina que sempre caracterizou os adeptos do Partido Conservador no Império. João Hermes era a encarnação mesma do equilíbrio, do sentido da medida e da proporção, da moderação, do predomínio da razão jurídica sobre as paixões políticas e os ressentimentos históricos.
Havia nele, além do lado platino, muito do diplomata treinado na Cúria romana, a outra de suas especialidades. Ele havia servido longos anos no Vaticano, conhecia como ninguém os meandros da antiga diplomacia da Igreja e adquiriu até certo ar cardinalício na maneira de ser e de falar. Penso que jamais partilhou o fundo de desconfiança anti-argentina de muitos dos diplomatas brasileiros do passado justamente porque a experiência da diplomacia eclesiástica ensinou-lhe as virtudes da paciência, da benignidade, do realismo de longo prazo. Imprimiu-lhe, acima de tudo, qualidade na qual creio que ninguém o igualou: a extraordinária prudência, não no mau sentido da vacilação, da insegurança, mas como atributo que lhe permitia analisar e antecipar todas as possíveis implicações negativas de cada palavra, de cada gesto.
Não resisto narrar aqui pequena anedota da qual sou hoje o único dos protagonistas vivos e que ilustra o que quero dizer. Estávamos em 1978, último ano do governo do presidente general Ernesto Geisel e João Hermes, então Chefe do Departamento das Américas, era o principal, na verdade quase único assessor com conhecimento jurídico e vivência pessoal do problema que auxiliava o Ministro Azeredo da Silveira na negociação para tentar compatibilizar as condições de operacionalidade da usina de Itaipu, já em avançado estágio de construção e o projeto da usina de Corpus Christi, na divisa paraguaio-argentina, quilômetros abaixo. O essencial das tratativas se desenrolou no Itamaraty de Brasília e o negociador argentino foi o embaixador Oscar Camilión, falecido também neste ano, no mês de fevereiro, um dos mais brilhantes analistas de política externa, antigo redator-chefe de El Clarín e futuro ministro das Relações Exteriores e da Defesa da Argentina.
Camilión era meu velho amigo, dos tempos em que servi como secretário na embaixada em Buenos Aires e havíamos conservado estreita ligação ao longo dos anos. Sentia-se às vezes um tanto desamparado por ter de lidar com Silveira, que não era propriamente um adepto da difícil arte do diálogo e tendia em certas ocasiões a monopolizar a conversa com suas opiniões categóricas. Em mais de uma ocasião, após renovada frustração com o chanceler, Camilión me procurava para se queixar: “Que debo hacer, Rubens, mi gobierno me encarga de presentar una nueva propuesta y tengo en Itamaraty dos interlocutores, uno, Silveira, quien solo habla y no escucha, el outro, João Hermes, quien solo escucha y no habla. Que debo reportar a mi gobierno?!”
Pondo de lado o humor da situação, a verdade é que, devido à questão das duas turbinas adicionais suscitada na última hora pelo Brasil e o Paraguai, a negociação não conseguiu chegar a bom termo no governo Geisel, que terminou em março de 1979. João Hermes permaneceu como assessor do Ministro Saraiva Guerreiro e em cerca de seis meses, o impasse que durara anos seria resolvido em outubro com a assinatura do Acordo de Compatibilização entre Itaipu e Corpus, solução definitiva que já desafiou o teste de mais de 35 anos de duração. Aliás, uma nota curiosa de pé de página é que Corpus jamais sairia do papel… É claro que o Ministro deu a orientação geral, mas a negociação passo a passo foi conduzida pela mão firme de João, como posso atestar pois trabalhei a seu lado uma ou outra vez o substituí nessa época.
Modelo de modéstia, de auto apagamento (outra qualidade religiosa), nunca lhe deram o merecido realce na remoção do último grande obstáculo que entorpecia a cooperação com a Argentina. Esse relacionamento começaria a florescer em duas áreas fundamentais, a da integração que levaria no devido tempo ao Mercosul e a da construção da confiança em matéria nuclear, a partir de Sarney-Alfonsín, justamente quando João Hermes era o embaixador do Brasil em Buenos Aires. Vale, assim, a pena realçar seu papel crucial num dos exemplos mais indiscutíveis, na história diplomática das Américas, da solução de um grave conflito exclusivamente por meio da negociação e do espírito de compromisso. Em comparação com o abuso propagandístico recente de falsos “êxitos” diplomáticos que não passam de operações de “public relations” destinadas a uma vida fugaz, penso que essas realizações palpáveis e duráveis constituem o que de mais próximo existe na diplomacia brasileira contemporânea das grandes contribuições de Rio Branco no começo do século 20.
Em registro diferente, vale assinalar que, sendo um dos maiores eruditos que passaram pelo Itamaraty, conhecendo como ninguém a História Diplomática do Brasil nos menores detalhes, era personalidade de modéstia a toda prova. João Hermes era um “gentleman” e, fora da carreira, um colecionador exímio desde os 14 anos de idade, como seu tio, o embaixador Fonseca Hermes. Pertencia ao grupo seleto, de três ou quatro pessoas, que eram os maiores conhecedores, em nível de perícia judiciária, da arte brasileira do passado, sobretudo de esculturas, pinturas, mobiliário e prataria da Colônia e do século 19. Na segunda metade dos anos 60, organizou quase sozinho no Museu de Arte Decorativo de Buenos Aires (Palácio Errázuriz), uma exposição notável que ficou durante semanas a fio em primeiro lugar entre as mais visitadas na Capital argentina: “El Arte Luso-Brasileño en el Río de la Plata”, com móveis, esculturas, pratas e quadros quase todos de velhos conventos e residências argentinas. Uma só peça proveio do Brasil, do Itamaraty, a “Divina Pastora”. JH mostrou assim como era intenso, já na Colônia mais remota, o relacionamento cultural entre o Brasil e o Vice-Reinado. Boa parte das imagens religiosas argentinas, inclusive as duas mais célebres, o Cristo da Catedral de Buenos Aires e a Virgen de Luján, Padroeira da Argentina, haviam sido realizadas por artesãos portugueses ou brasileiros, alguns até de origem cristã-nova.
Maria Amélia, companheira de João Hermes, falecida anos antes do marido, deixou a todos que a conhecemos a recordação de uma pessoa que aliava a doçura, a fidalguia de gosto, a generosidade de espírito à fortaleza de caráter, a uma personalidade harmoniosa, transbordando de energia e inteligência. Formavam juntos um casal que encarnava o melhor do Brasil nos seus valores autênticos de retidão, cultura, equilíbrio, graça, espírito e beleza. Fique aqui, neste breve artigo, o preito de comovida amizade e irremediável saudade dos muitos que devem a Maria Amélia e a João Hermes um tributo de gratidão pelo privilégio de havê-los conhecido e admirado.
Artigo por ocasião do falecimento do embaixador João Hermes Pereira de Araújo, publicado na Revista da Associação dos Diplomatas Brasileiros em 09/08/2016. A publicação pode ser acessada clicando aqui.