Ex-ministro do Meio Ambiente e Amazônia Legal, o Embaixador Rubens Ricupero faz uma análise do atual cenário mundial.
Por Jorge Pinheiro Machado
VIDI – O que está acontecendo com a República?
Rubens Ricupero – A Nova República inaugurada com o fim do regime militar em 1985 e estruturada pela Constituição de 1988 completou 35 anos de duração com sinais de esgotamento tanto do sistema político quanto da economia. O fracasso do governo Bolsonaro é apenas o mais recente episódio de uma crise que se vem desdobrando sem interrupção desde o colapso da economia e o impeachment de Dilma Rousseff (2015/16), seguidos pela breve e conturbada transição do governo Temer. As eleições de 2018 agravaram a situação com a vitória de candidato presidencial sem qualidades morais, políticas e intelectuais para o posto, desprovido de base partidária, populista, demagogo, extremista sem convicções democráticas, ligado a movimentos de extrema direita, anticientíficos, antirracionais, o que nos EUA se denomina de “lunatic fringe”, isto é, a franja lunática da opinião pública. Como era possível prever na campanha, esse governo se mostrou incapaz de enfrentar e reverter o declínio da economia e acentuou deliberadamente a polarização e radicalização política do país. Agravou de modo incalculável o impacto trágico da pandemia do Covid-19, com a demissão de um ministro da Saúde competente, arruinou o patrimônio de “soft power” acumulado em décadas pela política externa, promoveu retrocessos lamentáveis na Amazônia, no meio ambiente em geral, no tratamento dos povos indígenas, destroçou a imagem do Brasil no exterior, afugentou possíveis investidores. Quando chegar ao fim, deixará o país muito pior do que o recebeu. Por baixo dessa situação de curto prazo, continuam sem solução os problemas que tornam o sistema político cada vez mais disfuncional: proliferação de partidos políticos, dificuldade de construir coalizões eficazes de governo sem o recurso à corrupção, regime eleitoral que torna as eleições dispendiosas e não estimula a renovação e o rejuvenescimento das lideranças, regime presidencialista rígido em que o impeachment acaba sendo a única forma de se livrar de governo fracassado. Ao mesmo tempo e em parte como consequência da má qualidade das instituições políticas, a economia brasileira não se revelou capaz de recuperar o dinamismo que perdeu na década de 1980. Há 40 anos o país praticamente não cresce ou só cresce por espasmos de curta duração seguidos de crises, o chamado “voo de galinha”. A saída do impasse e da crise passa por reformas profundas na ordem política e econômica, cujas fórmulas, discutidas há anos, são bastante conhecidas, mas enfrentam a resistência de interesses estabelecidos. Enquanto as instituições públicas brasileiras não se mostrarem capazes de auto reforma não haverá solução para a crise sistêmica da República no Brasil. As eleições presidenciais em si mesmas não poderão solucionar o problema mais profundo, que é o das reformas estruturais do sistema político e econômico.
VIDI – A que se deve a mudança de percepção para pior em relação à preservação da Amazônia?
RR – Deve-se essencialmente a uma ruptura radical promovida pelo governo atual com as políticas ambientais que vinham sendo seguidas com maior ou menos êxito por todos os governos democráticos desde 1985. Como lembrou no programa Painel da Globo News o antiministro do Meio Ambiente, Bolsonaro foi eleito com 100% de apoio de madeireiros, garimpeiros, mineradores, pecuaristas e outros setores empenhados em atividades predatórias na Amazônia. Antes de tomar posse, declarou tencionar suprimir o Ministério do Meio Ambiente (MMA) ou transferir suas atribuições. Só não fez isso por oposição da própria ministra da Agricultura. Salvou-se assim de ter de enfrentar, já no primeiro ano de mandato, sem contar com um ministério de meio ambiente, três graves crises ambientais – a do rompimento da barragem de Brumadinho, as queimadas na Amazônia, o derrame de petróleo no mar – das quais só a segunda teria alguma ligação indireta com a agricultura. Não suprimiu o MMA, mas nomeou para dirigi-lo pessoa incumbida de desmantelar todas as instituições e políticas que tinham sido consolidadas ao longo de décadas. O MMA sofreu cortes gigantescos de verbas, os especialistas treinados se viram afastados e substituídos por oficias da Polícia Militar ou Florestal na direção do IBAMA, do ICMBio, dissolveu-se a Secretária de Mudança Climática e o Departamento de Combate ao Desmatamento, as equipes de intervenção rápida contra queimadas deixaram de ter apoio, os fiscais foram acusados de praticar a “indústria de multas”, foram proibidos de destruir os equipamentos apreendidos de madeireiros e garimpeiros ilegais. O resultado lógico dessa política de estímulo à destruição é que o desmatamento e os incêndios voltaram a registrar taxas de crescimento que não eram vistas há mais de dez anos. A destruição da Amazônia, que havia caído de mais de 10.000 km² em média, antes de 2008 para menos de 4.000 km² em 2012, recrudesceu e continua a crescer sem controle. A consequência tem sido uma crescente reação de governos estrangeiros e da opinião pública mundial, que passaram a olhar para o governo Bolsonaro como o principal pária ambiental e ameaça ao meio ambiente, já se começando a registrar casos concretos de boicote de comércio e investimento em relação ao Brasil. Até agora, a reação do governo tem sido mais de relações públicas e propaganda, delegando o combate ao desmatamento ao vice-presidente gen. Mourão e ao Conselho da Amazônia. Tem havido o recurso às Forças Armadas e a operações de emergência, caras e de pouca eficácia. Como observou a antiga diretora do IBAMA, os militares têm gasto em um mês mais do que o IBAMA dispendia em um ano, sem resultados nem de longe comparáveis. Fora isso, não houve nenhuma mudança na questão principal: as pessoas e políticas que o governo Bolsonaro nomeou e adotou nessa área. Sem mudança efetiva nas ações, não haverá resultados.
VIDI – Quem vai dominar o mundo: um país ou a tecnologia?
RR – O mundo vai ser dominado pelo país que controlar as tecnologias de vanguarda: inteligência artificial, robotização, internet das coisas, internet das nuvens, computação quântica, energias renováveis baseadas no hidrogênio, possivelmente na fusão atômica, biotecnologia. Atrás da competição crescente entre Estados Unidos e China, a questão crucial não é o comércio, nem mesmo a economia, é o controle da tecnologia. Quem dominar a maioria das tecnologias de ponta, cedo ou tarde estará destinado a dominar o campo estratégico- -militar não só na tecnologia de armamentos, mas de comunicações, guerra cibernética, armas espaciais. Em algumas das áreas, os EUA e os países ocidentais foram complacentes, deixando espaço para que a China se adiantasse de modo sensível. É o caso, por exemplo, da velocidade 5G, na qual a Huawei distancia claramente suas duas rivais, a Nokia e a Ericsson em preço e qualidade. Um tanto tardiamente, o governo norte-americano vem pressionando outros países a não adotarem a tecnologia 5G da Huawei, alegando que a empresa teria vínculos com o regime chinês e constituiria um risco de segurança. O problema é que os norte-americanos não possuem no momento condições para oferecer uma alternativa devido ao atraso em que se encontram na área. No caso do Brasil, as pressões do embaixador dos EUA são públicas, manifestadas repetidamente na imprensa. O leilão para o 5G já foi adiado várias vezes e comenta-se que não será realizado neste ano.
VIDI – Meios de pagamentos diferentes do dólar.
RR – Há dois aspectos nesta questão: saber se, em futuro previsível, aparecerá outra moeda como alternativa ao dólar ou se meios de pagamento digitais acabarão por substituir tanto o dólar como as outras moedas convencionais. No que tange à primeira questão, é provável, no caso de agravamento da relação EUA-China, que Pequim busque, com o eventual apoio da Rússia e de alguns outros países vítimas de sanções americanas (Irã, por exemplo), organizar um sistema internacional de transferências e pagamentos independente do dólar e vinculado à moeda chinesa. Não será tarefa fácil e isso só sucederá provavelmente como medida extrema, uma vez que o comercio chinês depende hoje estreitamente do atual sistema de pagamentos. Por outro lado, havia casos concretos, já antes da pandemia, de surgimento de moedas virtuais, o que poderá ganhar impulso em razão da aceleração da digitalização das economias. O mais plausível é que a tendência se manifeste de maneira gradual e progressiva, devendo haver longo período de transição no qual coexistam tanto a moeda virtual quanto a moeda convencional.
VIDI – O Brasil deve emitir moeda ou utilizar as reservas para financiar gastos com a pandemia?
RR – Nem uma coisa nem outra. Emissões ou uso de reservas constituem saídas aparentemente mais fáceis, mas que acabam agravando problemas crônicos. Em vez de continuar a empurrar com a barriga as reformas indispensáveis, o que as instituições devem fazer é enfrentar o desafio uma vez por todas, dentre elas a prioritária reforma do regime tributário, corrigindo suas distorções. Já amadureceu no Brasil o debate sobre o caótico sistema de impostos, já se dispõem de excelentes propostas como a elaborada pelo grupo coordenador por Bernardo Appy. Com a reforma adequada, o país criaria condições para recuperar o dinamismo do crescimento econômico e passaria a ter condições de financiar de modo sustentável a indispensável redistribuição social da renda. Que, aliás, passa pela reforma do sistema tributário altamente regressivo e injusto para os que menos ganham.
VIDI – Avaliação da situação econômica do Brasil e do mundo pós-pandemia.
RR – Ainda não dispomos de elementos sólidos para poder afirmar com razoável segurança se a recuperação das economias se fará em V, com crescimento veloz, em U, com fase mais longa de baixo crescimento, ou outras letras do alfabeto, como, no caso mais desastroso, em L, quer dizer, prolongada recessão, até depressão. Muito vai depender do êxito de uma ou várias vacinas, da disponibilidade de número mínimo de doses para imunizar grande parte da população e da duração da imunidade. Além disso, outro complicador é que a pandemia se encontra em diferentes estágios de intensidade e gravidade dependendo dos países. Em outras palavras, não existe sincronia entre os países em relação ao momento em que suas economias são afetadas de forma mais grave. É o que se está vendo não só entre nações, mas até no caso do Brasil e dos EUA, nas diferenças entre os vários estados da federação. Por todas essas razões, provavelmente não teremos uma recuperação econômica mundial instantânea, mas sim gradual. Um bom indicador será acompanhar o que está começando a acontecer com as economias asiáticas, as primeiras atingidas e também as primeiras a sair da fase mais aguda da doença. No caso do Brasil, receio que a situação seja mais difícil, em parte porque, como sabemos hoje, antes mesmo do início da pandemia, a economia brasileira já estava praticamente em recessão. Se somarmos a isso o desastrado comportamento do governo federal em relação ao Covid-19, a persistência de aumento de casos e mortes em muitas regiões, além da incerteza e insegurança política, as perspectivas não parecem animadoras.
VIDI – País que mais acertou, em especial na pandemia.
RR – De maneira geral, os países que tiveram melhor desempenho na pandemia foram os do Leste da Ásia, com destaque para Taiwan (o vice-presidente é epidemiologista), Singapura, Coreia do Sul, Japão. Todos eles aprenderam com a experiência das epidemias anteriores da SARS (2003) e da MERS (2015). Agiram com rapidez, aplicando testes maciçamente, isolando os infectados. Suas taxas de mortalidade foram muito inferiores às dos países ocidentais e conseguiram sair mais cedo da paralisação de atividades. É o resultado de culturas altamente disciplinadas do ponto de vista social, acostumadas a usar máscaras, a evitar os cumprimentos com as mãos, sempre obedientes aos ensinamentos da ciência. O desempenho da China foi misto, pois demorou a reconhecer a gravidade do problema e tentou suprimir informações no início. Até agora não sabemos se podemos confiar nos números chineses. Os europeus em geral foram lentos no começo, mas logo reagiram com eficácia, aplicando confinamentos estritos e conseguindo deter a doença. Os exemplos piores foram e estão sendo os de dois governos populistas e hostis à ciência e à razão: os EUA de Trump e o Brasil de Bolsonaro, este último o caso seguramente pior – nenhum outro país do mundo, ao que eu saiba, mudou três vezes de ministro da Saúde durante a pandemia.
VIDI – O mundo sai pior ou melhor do ponto de vista econômico e social?
RR – Não há dúvida que o mundo sai pior. Basta pensar nas mais de 500.000 mortes até agora, que não teriam existido sem o vírus, além das gigantescas perdas de produção, emprego, renda, retrocesso em pobreza. O mais importante é saber se os países terão capacidade de aprender com a pandemia. A agenda mundial pós-pandemia deverá mudar radicalmente, da mesma forma que a agenda dos anos 1930, dominada pela Grande Depressão, mudou depois da Segunda Guerra Mundial. Quando terminou o conflito, a nova agenda passou a ser caracterizada por três grandes prioridades: 1ª) a reconstrução da infraestrutura de transportes e produção destruídas; 2ª) a criação do Estado de Bem Estar Social para corrigir as desigualdades e combater a pobreza; 3ª) o estabelecimento de instituições – as Nações Unidas, o Mercado Comum Europeu – a fim de evitar a repetição de guerras mundiais. Desta vez, haverá cenário parecido. Teremos provavelmente agenda com três prioridades: 1ª) a retomada da atividade econômica, desta vez sem necessidade de reconstruir, mas buscando conduzir a economia a uma organização nova, de economia de baixo carbono, de produção verde; 2ª) uma ação enérgica contra o agravamento das desigualdades, mediante programas de transferência de renda como os adotados durante a pandemia; 3ª) a criação de um sistema global para evitar a repetição de outras pandemias no futuro, reformando e ampliando o mandato e os recursos da Organização Mundial de Saúde (OMS).
VIDI – Populismo.
RR – Tenho a impressão ou a esperança de que já ultrapassamos o pico do populismo. Seu apogeu ocorreu provavelmente com a eleição de Trump e o Brexit, alguns anos atrás, seguidos pela ascensão de movimentos populistas na vida política da Itália, França, Alemanha. Os populistas fracassaram rotundamente em enfrentar a pandemia, pois constituem movimentos hostis à ciência e ao conhecimento. Os exemplos mais flagrantes são, como se disse acima, os dos EUA de Trump e o Brasil de Bolsonaro, mas não faltam outros. Os governos europeus saíram em geral fortalecidos da crise e em nenhum país europeu se assistiu até agora a um avanço do populismo por causa da pandemia. Pelo que se está vendo do ambicioso programa de recuperação da Europa, aparentemente os governos do continente europeu não criarão oportunidades para o retorno da demagogia populista.
Entrevista publicada na revista VIDI, edição nº 5, de agosto de 2020. A publicação original pode ser conferida clicando aqui.