Jurista, diplomata e historiador, o ex-ministro Rubens Ricupero afirma que se o Mercosul, que completa 30 anos nesta sexta-feira, fosse recalibrado para questões agropecuárias, potência natural de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, a região teria um novo peso no mundo e poderia influenciar as cotações internacionais de produtos como soja, milho, carne bovina e aves. Com a visão de quem participou ativamente da aproximação entre Brasil e Argentina, em um primeiro momento, e depois com os demais sócios do bloco, Ricupero disse, nesta entrevista ao Vida de Empresa, que apesar de ver muitos problemas no Mercosul, o conjunto de países precisa ser revitalizado. “Mas isso não significa que pense que o Mercosul deve ser abandonado, pelo contrário, é preciso conservar aquilo que já foi conquistado e procurar avançar naquilo que é possível, mas sempre com uma visão realista das coisas”. O ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, atualmente professor da FAAP, contudo, lembra que houve muitos avanços e uma maior atuação regional das empresas. Ele defende que o bloco também poderia ganhar peso com uma visão mais ambiental. Leia, abaixo, os principais pontos de sua entrevista:
Como foi a criação do Mercosul?
Havia uma preparação adequada para aquele grande passo à frente que se deu. Todo o trabalho paciente e persistente da remoção de resíduo de desconfiança, mas vamos até usar a palavra correta, de antagonismo — porque havia antagonismo entre nós e a Argentina, mas também por questões históricas com o Paraguai e o Uruguai –, deu resultado. O presidente Fernando Collor removeu, pacientemente, todas estas questões, completando o trabalho que havia sido iniciado lá atrás com o acordo tripartite de outubro de 1979, que permitiu compatibilizar Itaipu com o projeto Corpus, argentino, foi um tratado em definitivo que resolveu a grande questão que havia envenenado as relações na região. E temos que reconhecer o papel pioneiro do presidente José Sarney, do presidente Raúl Alfonsín (Argentina) e do Julio María Sanguinetti (Uruguai) na aproximação dos países. Havia uma convergência naquela época, que foi construída por presidentes democráticos.
E como está a situação hoje?
Hoje não existe essa convergência, essa familiaridade e essa confiança mútua para inspirar uma realização desta envergadura. E não havia só uma convergência de pessoas, mas a mesma visão do mundo. E nós carecemos hoje dessa visão do mundo, carecemos de um projeto de nação. Não temos mais a clareza de ideias que tínhamos naquela época. No momento da fundação do Mercosul, Carlos Menem e Fernando Collor tinham a mesma visão de mundo e, como você sabe, os dois representam muito o caráter da década de 1990. Essa foi a década do apogeu da globalização no mundo, foi o momento em que o comércio mundial mais se liberalizou e que também houve uma grande liberalização financeira e monetária. Esse, com certeza, foi o ápice do comércio mundial. Mas aquele momento passou na América Latina e passou depressa, porque logo depois houve um momento em que os países do continente foram controlados por governos de esquerda, governos que não tinham uma visão liberal da economia. Governo que, ao contrário, buscavam novamente construir uma base nacional da indústria. Então, é claro, que diante desse tipo de altos e baixos é muito difícil que esse tipo de integração exista. O fundamental na integração é que haja uma convergência de valores, de ideias e de aspirações. Não é à toa, por exemplo, que a União Europeia só se expandiu para todos os países da Europa Central e do Leste depois que acabou o comunismo. Só depois de 1989/1990 é que os países iniciaram a integração.
Mas nos governos de esquerda houve uma tentativa de expansão do Mercosul…
Uma vez eu escrevi, na época que o Hugo Chávez estava com a proposta de Socialismo do século 21, foi na mesma época que o Lula e a Dilma fizeram esforço para incluir a Venezuela no Mercosul. Hoje isso está esquecido, mas Venezuela foi incluída um pouco a força. Isso é um absurdo! Como incluir um país que quer o Socialismo do século 21 em bloco de países de economia de livre mercado? Um absurdo tão grande que salta aos olhos. Você não pode ter no bloco países com objetivos diametralmente opostos. E a história do Mercosul, em poucas palavras é assim, sempre houve desencontro entre os governos dos países. Quando a Argentina queria avançar a integração, o Brasil não queria, quando era o Brasil — como agora –, a Argentina não queria. Os menores sempre tiveram um papel menos relevante. Na verdade, é por isso que o Mercosul realmente não anda, porque aquele momento de fundação nunca mais se repetiu ao longo desses 30 anos. Nesse período tem havido altos e baixos, mas nunca houve um novo momento em que Brasil e Argentina, que são os fundamentais, estivessem bem com governos democráticos, com uma economia sólida e bases financeiras sólidas, ambos querendo ter uma integração competitiva no mundo. Nunca mais houve isso. E é por isso que o Mercosul é realmente um organismo muito imperfeito. Mas isso não significa que pense que o Mercosul deve ser abandonado, pelo contrário, é preciso conservar aquilo que já foi conquistado e avançar.
E as questões aduaneiras, como estão?
Até hoje a união aduaneira é muito imperfeita, pois está cheia de grandes falhas porque desde o início foram excluídos setores. O Brasil, por exemplo, que não queria absolutamente qualquer ação em informática, agora é curiosamente quem está baixando a tarifa. No passado, o Brasil tinha a lei de informática e não queria de maneira alguma que outros tivessem taxas mais baixas porque poderia prejudicar a nossa indústria. O Brasil também impediu taxas menores na indústria de bens de capital e equipamentos. Os outros, por exemplo, sempre excluíam o setor de açúcar, porque esse é um setor muito vulnerável devido ao alto custo de produção. De certa maneira, o Mercosul perdeu um pouco do foco do seu objetivo final.
Como assim?
Havia por trás deste projeto de integração, que hoje nós perdemos, um projeto de desenvolvimento nacional mediante, sobretudo, a industrialização, uma ideia que vinha da Cepal, que os asiáticos copiaram de nós e levaram ao extremo e nós ficamos pelo caminho. A ideia básica era que nós precisávamos nos industrializar e, para ampliar os mercados nacionais, para ter uma produção em grande escala, daí a ideia de integração e a integração acompanhava a ideia da industrialização. Ninguém imaginava que nós iríamos integrar vendendo soja a outros mercados, vendendo carne de boi. Era uma integração industrial. Nós, a Argentina, todos os países do bloco perdemos essa visão industrial.
Mas hoje os quatro países do bloco são grandes produtores e exportadores de agricultura e pecuária…
Agora precisamos, ao retomar o projeto de integração, precisaríamos de uma nova base, não faria sentido voltar ao debate da industrialização, como enfrentar os desafios atuais da globalização. o Mercosul é uma das maiores potências agrícolas e de alimentos do mundo, se somarmos Argentina, Paraguai, Uruguai e o Brasil, a nossa força se faria teria impacto econômico mundial. Na produção de soja, milho, carne bovina, carne suína, frangos, em inúmeros aspectos, teríamos um peso enorme, isso nunca se fez, não se trata de vendermos apenas entre uns aos outros, mas de coordenar isso em relação ao resto do mundo. E no campo de serviço isso também poderia ser feito…
Ou seja, seria possível ter uma melhor integração a partir do agronegócio?
O exemplo da União Europeia (UE) poderia servir de inspiração, porque a UE tem uma política agrícola comum que foi criada justamente para ter regras na agricultura. Os europeus se tornaram grandes produtores e exportadores de alimentos em primeiro lugar porque eles fizeram um sistema de subsídios, onde os governos subsidiam a produção e também a exportação. Hoje em dia há no mundo um esforço para tornar ilegal os subsídios à exportação e eles vem reduzindo muito. Porém, ainda há muitos subsídios domésticos na produção. Então, os europeus têm uma política comum agrícola e nós não temos. Logo, o Mercosul deveria definir uma política agrícola comum — não na base de subsídios, porque nós nem precisamos disso –, mas com regras que poderiam multiplicar as vantagens competitivas dos quatro países, pois eles produzem mais ou menos as mesmas coisas. Mas para isso, é necessário definir todas as políticas, a exemplo dos que fizeram os europeus, tanto quanto à produção quanto à exportação e até mesmo a industrialização dos produtos de base agropecuária. Isso nunca foi feito. Isso é curioso, pois embora seja a área de vocação do Mercosul, nunca houve um esforço de integração nessa área.
O senhor comentou que apesar de a integração não ter sido plena, houve um crescimento nos investimentos de empresas entre os países. Houve integração empresarial?
Gostaria de fazer uma observação sobre uma grande transformação que ocorreu ao longo desses 30 anos, que foi o aumento dos investimentos entre os países. Quando o Mercosul começou não havia empresas brasileiras ou argentinas que tivessem uma presença nos outros países, mas hoje há. Há muitas empresas brasileiras que compram empresas argentinas e algumas argentinas que adquiriram brasileiras. Isso aumentou muito. Nesse aspecto, eu acho que as empresas fizeram um esforço grande e só não fizeram mais porque, como eu já disse, os governos não fizeram mais, porque os governos nunca tiveram uma continuidade. Se tivesse mantido o impulso dos fundadores, o panorama seria completamente diferente, mas não se manteve. A verdade é que uma história de sucesso de integração é incompatível com uma história de alta tradição de instabilidade econômica, cambial e monetária, que é infelizmente a história do Mercosul.
A pandemia poderia ter sido diferente se o Mercosul fosse mais ativo?
A etapa que precedeu o Mercosul foi a etapa dos acordos bilaterais setoriais entre Argentina e Brasil. Um desses acordos era na área de pesquisa e desenvolvimento e produção de farmacêuticos. Inclusive o Brasil e a Argentina chegaram a desenvolver juntos fabricação de insulina. Isso não continuou, isso foi abandonado e isso só aconteceu nos anos 1980, antes do Mercosul. Neste momento não há o que esperar, porque entre os quatro países só um está relativamente bem, que é o Uruguai, os outros estão todos em graus diferentes de crise. A do Brasil é gravíssima, com o setor econômico que perdeu o rumo e não sabe para onde vai, a Argentina não é menos grave. Então, o mais se pode tentar é sobreviver a esse período e esperar até que melhorem as condições políticas e econômicas. A curtíssimo prazo eu posso te dizer que eu não acredito que nada possa se fazer no Brasil com o atual governo, então isso é só no futuro e se tiver um governo mais racional. No momento só não devemos jogar fora os avanços do Mercosul.
O acordo entre Mercosul e a União Europeia está emperrado por questões ambientais. Como o bloco deveria tratar desta questão?
O tema ambiental tornou-se um tema central da diplomacia no mundo contemporâneo e vai dominar esta agenda por muitos anos. Esse é o único grande tema em que Estados Unidos e China conseguem encontrar um terreno de cooperação. Eu não tenho dúvida nenhuma que todos os países vão se alinhar neste aspecto. O Brasil não pode querer ficar na contramão. A melhor forma de reagir a isso é não ter uma atitude negativista, reativa. O problema existe e está piorando. Na Amazônia entre 2004 e 2014 conseguimos reduzir o desmatamento de 12 mil km² por ano para menos de 3 mil km² por ano, e ultimamente aumentou muito e já estamos com mais de 10 mil km² de novo. Precisamos ter uma atitude proativa, mas isso não é cortando a verba do Ministério do Meio Ambiente à míngua, reduzindo o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade quase que a uma ração de sobrevivência, desestimulando os fiscais, perdoando multas e estimulando garimpeiros, estimulando madeireiros ilegais, estimulando grileiros. É verdade que a gente não precisa de mais terra para produzir soja, mas os que estão destruindo a floresta não vão produzir soja, eles querem apenas reivindicar a posse da terra, no sistema do velho grilo. Isso nós temos que combater, isso é o que nos prejudica. Se desmatarmos a Amazônia até um certo ponto, vamos perder a vantagem de produzir soja, pois terá impacto nas chuvas no Mato Grosso, Goiás, Centro-Sul e até na Argentina, pois grande parte da umidade destas regiões vem da Amazônia. Se destruirmos a Amazônia estamos dando um monumental tiro no próprio pé.
Entrevista publicada no site Vida de Empresa em 26/03/2021. Clique aqui para acessar a publicação original.