No próximo dia 21, completam-se 20 anos sem Tancredo. A prolongada agonia do papa me fez lembrar dos momentos que vivemos durante os 45 dias da paixão e morte de Tancredo: entradas e saídas da UTI, boletins otimistas, tentativas de fazer crer que o paciente não estava morrendo. Tudo para culminar no inexorável: a explosão de dor que acompanhou a morte.
Não sabe o tempo ter firmeza em nada, dizia Camões, e esse nada inclui o luto e a festa. Veio Sarney e, com ele, o Plano Cruzado, a moratória, a Constituição de 1988. Ruiu o Muro de Berlim, desintegraram-se a União Soviética e o “socialismo real”. Collor riscou o céu como cometa em chamas. O Iraque invadiu o Kuait e deu-se mal. O genocídio, ao qual se colara a etiqueta “nunca mais”, foi reprisado em Ruanda. No Brasil, as chacinas da Candelária e de Vigário Geral anunciaram que havíamos dado um salto qualitativo em barbárie. Itamar trouxe o Real, que quebrou a espinha da hiperinflação. Fernando Henrique foi eleito e reeleito. Morreu Ulysses e também Mitterrand. Clinton apareceu. O apartheid acabou, igualmente chegando ao fim o sandinismo na Nicarágua, a guerrilha na Guatemala e El Salvador. Presidentes vieram e se foram. Os terroristas atacaram o coração dos EUA. Lula ganhou na quarta tentativa. O Afeganistão desmoronou, o Iraque foi invadido. Os muros voltaram à moda em Israel e outros lugares. Milhares de vidas foram varridas pelo tsunami. Sobrevivendo a tudo e a todos, o reino de João Paulo 2º só se extinguiu após consumir o último pavio da última vela.
Se Tancredo não tivesse morrido, essa história dos últimos 20 anos teria sido diferente? Para o Brasil, certamente, mas de que forma? Como seria preparada e conduzida a Constituinte por alguém de autoridade sobre o PMDB comparável à de Ulysses? A Constituição aprovada sob tais auspícios facilitaria o combate à inflação? Ou seria indispensável passar pela experiência do Cruzado a fim de perceber que a inflação era inercial? Pode-se conceber moratória com Tancredo?
A essas perguntas só é possível dar respostas probabilísticas. A única certeza que temos é das virtudes que descobrimos no presidente eleito. A fina argúcia, o senso de proporção e equilíbrio, o gosto da simplicidade, o humor tingido de ironia benevolente, a sabedoria nascida de longa experiência do poder e dos homens. A algumas dessas qualidades, de Risoleta agregava outras, as da mulher forte das Escrituras, conforme mostrou ao consolar a multidão aflita. Uma vez passei algumas horas no solar dos Neves, em São João Del Rey (MG), e compreendi de onde brotava tanta elegância singela em ser e parecer: das raízes profundas do Brasil e de Minas, da fonte de que jorra a água mais pura e cristalina.
Minas não há mais, adverte-me Drummond. Tanta coisa não há mais desse passado e, entre elas, Tancredo e Risoleta, o melhor do Brasil que um dia fomos! A Presidência tão ansiada de Tancredo não houve. Ou melhor, só existiu na imaginação e na aspiração coletivas. Foi talvez melhor assim. Não só porque, como diz Pasolini no fim de “Decameron”, a obra de arte sonhada é sempre mais bela do que a realizada. É que, ao permanecer “una Cosa mentale”, ela não morre nunca, ela continua a alimentar o Brasil que o hino chama de “um sonho intenso”. Quem nos assegura de que o melhor dos anos recentes _a busca da estabilidade, o padrão de tolerância democrática, a crescente consciência de que é preciso agir contra a injustiça e a desigualdade_ não venha um pouco da esperança que Tancredo despertou com a Nova República, do seu exemplo esboçado e que ficou inacabado?
Quem garante que só a história “real” é que conta? Creio que foi Milton quem escreveu: “He also serves who only sits and waits” (“Também serve aqueles que apenas senta e espera”). De Maria, que sentou-se a seus pés para escutá-lo, disse Jesus que tinha escolhido a melhor parte. E se a melhor parte de nossas histórias tivesse sido aquele sonho intenso? Ao menos é o que hoje penso. E por isso estou seguro de que Tancredo foi o maior e o melhor de todos os presidentes que o Brasil nunca teve.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/04/2005.