Escolhida devido ao temor dos protestos antiglobalização, a reunião de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) realiza-se sob o signo de medo diferente: o de algum atentado dos terroristas fundamentalistas. Meus colegas da OMC só foram persuadidos a comparecer mediante seguro de vida especial de US$ 500 mil para cada um.

Quando os leitores lerem o artigo que escrevo antes de partir, espero ter já falado em nome da ONU na sessão inaugural e estar de volta a Genebra, libertando-me do meu próprio medo. Ao menos dessa última encarnação particular de ameaça que se espalha por todos os domínios da vida, faz os aviões voarem semivazios, os turistas cancelarem suas reservas, o FMI anular a sua reunião e o Fórum de Davos mudar-se para Nova York.

Vem isso adicionar-se aos medos preexistentes: o do antraz, da varíola, do terrorismo nuclear, contra as pontes de San Francisco, o dos gases venenosos, da vaca louca. Uma das muitas loucuras da nossa orgulhosa “civilização” é justamente esse paradoxo: os militares, profissionais do risco, tornaram-se quase invulneráveis, ao mesmo tempo em que os governos mostram-se cada vez menos capazes de garantir um mínimo de segurança individual às populações civis.

Outro paradoxo é o da própria região em que se realiza o encontro da OMC. O golfo Pérsico, pátria dos emirados, é das zonas do mundo menos participantes do comércio. Dependentes quase exclusivos do petróleo, os países do Golfo, em sua maioria, inclusive a Arábia Saudita e o Irã, nem são membros da OMC. Não deixa de ser irônico que, se o comércio é a panacéia universal para todos os males, como se alardeia, sua assembléia geral tenha de se fazer a portas fechadas, em país de difícil acesso, quase sem sociedade civil, longe dos olhos e da participação das pessoas que são supostamente suas principais beneficiárias.

Ainda mais quando um dos argumentos utilizados em abono do lançamento de novas negociações comerciais é que elas são necessárias para combater a recessão. O exagero é evidente, pois salta aos olhos que o desemprego, a redução da atividade econômica e do consumo, o corte dos investimentos são os fatores que explicam o desaparecimento da demanda por importações. O comércio não é elemento autônomo. Para ativá-lo, mais importantes que negociações, cujo efeito só se fará sentir a médio e longo prazo, são as medidas de redução de juros e gastos orçamentários tomadas pelo governo americano.

Reduzida a dimensão mais realista, a utilidade das negociações deveria manifestar-se sobretudo como meio de contra-arrestar o medo do protecionismo. Para isso, no entanto, seria necessário enfoque prioritário nos setores como o aço e a proteção agrícola, em que as pressões não são hipotéticas, mas estão prestes a produzir efeitos. Dois exemplos bastam. No caso do aço, o secretário do Tesouro dos EUA está promovendo, entre os 39 maiores países produtores, negociações cujo objetivo é reduzir a capacidade instalada e a oferta, a fim de permitir a sobrevivência da indústria siderúrgica americana. Em relação à agricultura, a Câmara dos Representantes (deputados) acaba de aprovar, por esmagadora maioria, o projeto de nova lei agrícola americana, ora no Senado e para vigorar até 2011. Se confirmada na forma atual, a lei poderá elevar a US$ 409 bilhões as despesas com o apoio do governo aos 2 milhões de produtores rurais americanos. Ora, nesses dois setores não há sinais de que a reunião de Doha se apreste a fazer algo de significativo.

Não significa isso que ela se revelará inútil ou perniciosa, desde que as expectativas sejam trazidas das nuvens da retórica para a realidade dos interesses estreitos dos negociadores comerciais. Sempre recusei-me a usar expressões como “Rodada do Desenvolvimento”. Não porque não a deseje em sonhos, mas por saber que os poderosos não hão de permitir que uma rodada de negociações seja dominada por esse tipo de considerações. O que move os grandes são preocupações de outra ordem, certamente legítimas, tais como a solução dos conflitos comerciais entre EUA e Europa ou desses dois com o Japão. O máximo a que se deve aspirar, nessas condições, é ao lançamento de tratativas que reservem aos interesses dos subdesenvolvidos lugar central ao menos equivalente às propostas dos países mais avançados.

Uma nova rodada só merecerá a invocação do desenvolvimento se, ao final, atingir dois objetivos: 1º) não aumentar o medo dos vulneráveis, ao impor-lhes novas e exageradas obrigações; 2º) corrigir os desequilíbrios do atual sistema, liberalizando áreas do interesse dos menos avançados e até hoje excluídas (agricultura, têxteis, produtos sensíveis, mão-de-obra etc.).

Dentro desse mesmo espírito de comedimento e senso de proporções, penso ser interesse do Brasil que a reunião de Qatar inicie negociações capazes de completar e equilibrar as da Alca. Não é segredo que os EUA dificilmente negociarão no âmbito hemisférico assuntos que consideram globais, mas em que se concentram muitas das barreiras enfrentadas pelas exportações brasileiras: aço, antidumping, direitos compensatórios, salvaguardas, açúcar, etanol, tabaco, suco de laranja, proteção doméstica ao algodão. Corremos, assim, o risco de ter o pior de dois mundos: uma zona de livre comércio que inclua os setores nos quais temos dificuldade de competir e deixe de fora as áreas nas quais somos competitivos. Combater tais perigos exige garantir que os temas do interesse brasileiro sejam seriamente negociados no foro multilateral da OMC, em que a presença de maior número de países em desenvolvimento diminui um pouco a avassaladora supremacia americana na Alca. Os dois processos, o multilateral e o hemisférico, deveriam ser simultâneos e sintonizados para permitir-nos, na conclusão, calibrar nossas concessões. Pode não parecer grande coisa, mas quem sabe se não conseguiremos desse modo reagir ao medo de negociar que nos paralisa?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/11/2001.