Em 1995 foi a ressaca da tequila, 1997, a crise asiática, 1998, a da Rússia e do Brasil, 1999, o fiasco do euro. O ano 2000 começou bem, evitando o excessivamente anunciado desastre dos computadores. Céu azul e sem vento, a ponto de entusiasmar o FMI quanto às perspectivas de crescimento. É verdade que o Fundo tem o entusiasmo fácil. Na primavera de 1997 suas previsões foram tão eufóricas que o “Financial Times” as noticiou com o seguinte título de página inteira: “O futuro do mundo é cor-de-rosa, diz o FMI”. Três meses depois começava a crise asiática…
Desta vez, embora o preço do petróleo tenha mais que triplicado em 18 meses, hesita-se em dar ao que está acontecendo o nome de terceiro choque petrolífero. A razão básica é que se espera que os aumentos se revelem temporários. Mas isso não quer dizer muito se não se especificar até quando vai durar esse “temporário” e a que nível se equilibrarão os preços quando passar a tormenta.
Poucos aguardam a redução de preços antes da primavera de 2001 e isso mesmo se o inverno no hemisfério Norte não for rigoroso. Os motivos são conhecidos: baixo nível dos estoques (a outra cara do sistema “just-in-time” para cortar custos); refinarias e frota petroleira operando perto do limite da capacidade; limitada capacidade de expandir a produção, salvo em raros países como a Arábia Saudita; incerteza política quanto ao Iraque etc.
Em relação aos preços, a aposta é que eles se fixarão ou entre US$ 22 e US$ 28 o barril, como quer a Opep, ou de US$ 20 a US$ 25, conforme prefeririam os EUA. Nem os US$ 10, de janeiro de 99, nem os US$ 50, antes do fim deste ano, profetizados pelos apocalípticos. A US$ 25 ou mesmo US$ 28, o barril custaria em termos reais _do dólar corrigido de 1979_ bem menos do que naquele distante auge do segundo choque, quando se inaugurava no Brasil o governo do general Figueiredo. Ainda que relativamente moderado, esse nível já representaria deixar para trás gradualmente a fase, iniciada em 1986, de petróleo tão barato que estimulou aumento de 11% no consumo dos EUA e da Europa. Até hoje, aliás, nos Estados Unidos, o galão de petróleo oscila entre US$ 1,55 e US$ 1,75, valores comparados ao US$ 1,90, preço de uma garrafa grande de água mineral!
De acordo com o cenário benigno, os estragos seriam limitados e de curta duração, como a deterioração das expectativas de saldo comercial ou de folga no ajuste orçamentário no Brasil. Tanto em termos de aumento da inflação como de desaceleração do crescimento, o impacto não teria de ser necessariamente catastrófico.
Resta a saber se a razoabilidade dessas previsões não há de ser atropelada por algum fator inesperado, político ou de outra natureza. Pois o que impressiona nesse episódio é como até agora todos, economistas e governantes, subestimaram consistentemente o potencial do petróleo para desorganizar a vida econômica e social. Os economistas aderiram a uma linha de impecável racionalidade: a economia mundial se desindustrializou em benefício dos serviços; estes, justamente com as telecomunicações e a eletrônica, são pouco intensivos em energia; os produtos petrolíferos, que em 1973 respondiam por 20% das exportações totais, baixaram hoje a 7% ou 8%. Os governantes acharam que o enfraquecimento dos sindicatos, a consciência ecológica, a prosperidade geral tornariam fácil conter os protestos.
Tudo isso é verdade, mas não toda a verdade. Esqueceu-se de um detalhe: o transporte, individual ou coletivo, é tão dependente do petróleo como há um quarto de século. É até mais porque a longa era do óleo barato (1986 a 1999) fez explodir o consumo, amoleceu os esforços de economizar energia, desestimulou a pesquisa e os projetos alternativos como o do álcool no Brasil.
“Le Monde” talvez tenha exagerado ao comparar o automóvel ao que era o preço do pão no século 19: o símbolo mais irredutível de um produto de primeira necessidade. Não está tão longe do alvo, ao sugerir que o carro deixou de ser um sinal exterior de riqueza e prestígio para converter-se no que alguns sociólogos chamam de “fator estrutural” da liberdade.
Por maravilhosa que seja a nova economia nos ganhos de produtividade que promete, as pessoas continuam a precisar do automóvel, do caminhão, do avião, a fim de transportar as mercadorias e até para ir trabalhar, para dirigir-se aos seus computadores, por exemplo. Um dos aspectos mais curiosos dessa crise européia foi ver como táticas diametralmente opostas valeram a Lionel Jospin e a Tony Blair resultados igualmente desastrosos em queda de popularidade. O primeiro negociou, cedeu e foi condenado pela opinião pública.
O segundo inspirou-se na linha de ferro de Thatcher, endureceu com os manifestantes, obrigando-os a levantar o bloqueio, e foi condenado da mesma forma. Ambos foram vistos como defasados, ultrapassados pelos acontecimentos, fora de sintonia com o os sentimentos da maioria da população, que apoiava ativa ou passivamente os manifestantes, já que se sentia tão atingida como eles pelos preços altos dos combustíveis e a recusa dos governos de diminuir os impostos.
Dizia-se, em princípio, que era no fundo um fenômeno típico do país da Revolução Francesa, onde a tradição de erguer barricadas no Faubourg Saint Antoine faz com que a rua, não o Parlamento, seja o desaguadouro dos descontentamentos. Qual não foi a surpresa ao ver que a civilizada e fleumática Inglaterra não se comportava de modo muito diverso? Sem sindicatos dignos desse nome, na base de um movimento improvisado, espontâneo, em poucas horas a vida do país foi quase paralisada.
Esses repetidos, teimosos erros de avaliação é que nos fazem cismar; será que não estamos deixando passar algo despercebido ao predizer que tudo voltará ao normal em alguns meses? Entra aqui o problema das previsões das grandes organizações financeiras internacionais. Ao tocar triunfalmente o bumbo anunciador de que vai tudo pelo melhor no imelhorável mundo da globalização, até que ponto não se tornam elas cúmplices da complacência? Dessa lei do menor esforço que, tão logo passa o perigo imediato, leva a arquivar os planos de uma nova arquitetura financeira, a pôr de lado o esforço de poupar petróleo, de substituí-lo por alternativas renováveis e não-poluentes? Até que o próximo choque, não muito longe, mas sempre irrompendo de direção inesperada, nos lembre, pelo método mais contundente, de que só o aperfeiçoamento da colaboração e coordenação econômica internacional poderá espaçar as crises e torná-las menos destrutivas.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/09/2000.