Quarenta anos atrás, quando fiz exame para o Itamaraty, tive a sorte de que meu examinador de cultura geral se chamasse João Guimarães Rosa. Na velha biblioteca parecida a um templo grego, de portas abertas para o lado onde deslizavam os cisnes, ele entrou com sua indefectível gravata-borboleta e escreveu no quadro-negro dois temas de redação. O primeiro eram versos de Tomás Antonio Gonzaga: “O sábio Galileu toma o compasso/E, sem voar ao céu, calcula e mede/Das estrelas e Sol o imenso espaço”. O segundo era uma frase de Gustavo Corção: “Como explicar a desordem do mundo?”.

Havia, é claro, uma ligação entre os dois. A ordem do cosmos newtoniano em contraste com a desordem do universo humano. Já não lembro o que escrevi. Só sei que terminei com um verso de Camões que Rosa não conhecia e veio conferir comigo: “Mas o melhor de tudo é crer em Cristo”.

Dois séculos após Gonzaga, abalados pela relatividade, a física quântica, a teoria do caos, o princípio da indeterminação, já não temos tanta certeza de poder explicar a ordem do cosmos. Continuamos, porém, sem saber decifrar as causas da desordem do mundo.

Nesse ponto, a história persiste em nos pregar peças. Não faz muito, quando o “comunismo real” e a União Soviética começavam a acabar, houve quem pensasse que a história também chegava ao fim. Outros, sem ir tão longe, acreditaram que ao menos as coisas ficariam mais simples.

Afinal, desaparecido o conflito ideológico, o que impediria a construção da “nova ordem”, tal como anunciada por Bush? Hoje já nem mais se fala em nova ordem e o sentimento que se espalha aos poucos é de impotência e resignação tácita com o que se poderia chamar de nível tolerável de desordem, isto é, aquela que provoca desconforto, mas não a ponto de ameaçar a segurança e a prosperidade dos grandes.

A crise asiática, por exemplo, recebeu o mesmo tratamento que se dera, nos anos 80, à da dívida externa na América Latina. Em ambos os casos, a preocupação real dos poderosos foi evitar a quebra dos seus bancos, não o custo humano e social para as vítimas. Quem se importa, de fato, com os 15 milhões de desempregados da Indonésia, chegando a 20 na Ásia, com a anulação, em um ano de crise, de conquistas contra a pobreza que custaram 30 de esforços?

De acordo com as estimativas da Unctad, neste ano haverá aumento de 50% no nível de pobreza na Indonésia e de um terço na Tailândia. Mas, por um efeito perverso no balanço líquido da crise, os países ricos até agora saem ganhando, pois se beneficiam da queda dos preços do petróleo, cobre, outras matérias-primas e da importação de produtos asiáticos mais baratos.

O que lhes permitiu evitar ter de aumentar os juros, possibilitando a continuação da expansão econômica nos EUA e a consolidação da retomada na Europa, sem agravamento da inflação. Em contraste, não só os asiáticos estão longe de ver a luz no fim do túnel, mas até nações distantes como a Rússia, o Brasil e o Chile estão pagando um preço alto em menor crescimento e maior desemprego.

É como diz o Evangelho: “A quem já possui, mais lhe será dado. A quem pouco tem, até esse pouco lhe será tirado”.

Passando do econômico ao político, o panorama não é diferente. Não obstante a concentração do poder sem precedentes em mãos dos EUA e seus aliados ocidentais, a lista dos insucessos em resolver problemas ou prevenir outros é impressionante: a anarquia na Somália, o genocídio em Ruanda e na Bósnia, a guerra civil no sul do Sudão e agora em Guiné-Bissau, o conflito entre Etiópia e Eritréia, as violações maciças de direitos da população civil que acompanharam a rebelião no Zaire-Congo e agora se multiplicam em Kosovo, no coração da Europa, onde supostamente a ampliação da Otan deveria ditar a lei.

Na Ásia, a ausência de um sistema eficaz de segurança regional cria o vácuo da incerteza entre a China e o Japão, ao norte, e entre a Índia e o Paquistão, ao sul. As informações desalentadoras que o noticiário cotidiano nos serve regularmente a partir do Afeganistão e de Sri Lanka, de Myanma e de Camboja causam apenas tédio e indiferença. No Oriente Médio, o processo de paz naufraga sem que a maior potência do mundo logre influenciar Israel.

No entanto o “turning point” inconfundível, o evento que verdadeiramente põe fim ao ciclo de ilusões aberto com a queda do Muro de Berlim, é a explosão de armas nucleares pela Índia e o Paquistão. Sua mensagem é clara: as proteções e equilíbrios precários da Guerra Fria não foram substituídos por mecanismo confiável de segurança coletiva sob a égide da ONU, apoiada pelas grandes potências. Na sua ausência, é como lembrava Euclides a propósito de um episódio de Canudos: “Em tempo de murici, cada qual cuide de si”.

Ora, as tentativas de melhorar a ordem internacional, como as convenções do Direito do Mar e da Biodiversidade, no passado recente, ou o tratado antiminas e o da Corte Penal Internacional agora, sem falar na reforma do Conselho de Segurança ou no pagamento das contribuições atrasadas à ONU, não são capazes de atrair os Estados Unidos. Em todos esses casos, os norte-americanos receiam limitar sua margem de ação, não obstante a conversa-fiada de que deveríamos, os pequenos, prazerosamente sacrificar a soberania no altar da globalização. Parece que soberania pouca é bobagem; quando é muito, é intocável.

Esse é o grande paradoxo atual: o poder supremo não quer (ou não pode) impor a sua ordem às maiorias (como ocorria no passado), mas estas tampouco conseguem persuadir o poder e aderir à ordem que elas gostariam de construir democraticamente. O impasse se mantém enquanto não surge ameaça a interesses vitais do poder, a ponto de decidi-lo a pôr de lado escrúpulos éticos ou o escasso apetite guerreiro da população.

Se o poder não manda por lhe faltar legitimidade, seria preciso que se dessem os meios do poder a quem representa as maiorias e detém a legitimidade, isto é, as Nações Unidas.

Para isso, não basta que os donos do poder aceitem colocá-lo à disposição de uma organização mundial, o que, no momento, é, no mínimo, altamente duvidoso. Faltaria ainda dar à legitimidade teórica o conteúdo concreto, que, no mundo pós-Guerra Fria, só pode nascer da convergência da democracia com a prosperidade da economia de mercado.

Em outras palavras, processo decisório mais igualitário também no plano internacional e mercado capaz de evitar o agravamento da desigualdade entre as nações e no interior delas.

Como estamos a anos-luz dessa meta e, portanto, de uma verdadeira ordem, o melhor mesmo é buscar consolo nos versos evocados no início do artigo, nos quais Camões se dirige a Deus na sua linguagem de soldado:

“Não basta a minha fraqueza
Para me dar defensão
Se vós, Santo Capitão,
Nesta minha fortaleza,
Não puserdes guarnição”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 01/08/1998.