Na era da globalização e do monopólio americano do poder, só um barulho importuno perturba o sonho higiênico do neoliberal: o ruído que sobe da sociedade civil organizada. No seu contundente “Neoliberalismo em Choque”, Haroldo de Campos nos diz que: “O neoliberal … sonha … um mundo executivo / de megaempresários / duros e puros / mós sem dó / mais atentos ao lucro / que ao salário / … um admirável / mundo fixo / de argentários e multinacionais / … um mundo ‘privé’ / … à prova de balas / … durando para sempre _festa / estática (ainda que se sustente / sobre fictas / palafitas / e estas sobre uma lata / de lixo)”.

Mas, embora seja verdade, como diz a propaganda de Godzila, que “tamanho faz diferença”, felizmente para nós “o sonho do perpétuo status quo” não vai durar para sempre e pode até ser que já tenha começado a acabar.
Um dos mais barulhentos despertadores do sonho “onde sempremente nada mude” vem desses novos atores que, não sendo governos nem partidos, são formados por simples grupos de mulheres e homens comuns que sonham sonhos diferentes e se organizam para sentar-se, sem ser convidados, à mesa em que se joga o destino dos povos.

Quando se escrever no futuro a história deste fim de século, se dirá que as duas idéias-força que caraterizaram os últimos 30 anos foram os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. E se terá de reconhecer que a promoção desses dois sonhos foi feita não pelos governos, mas pelas organizações não-governamentais (ONGs), entre as quais a Anistia Internacional e o Greenpeace, que adquiriram status simbólico. Foram elas que, junto a milhares de outras, obrigaram os governos a relutantemente se mexer.

É fenômeno marcante e particular à segunda metade do século 20 a emergência desses protagonistas inéditos, que romperam malcriadamente o monopólio ciumentemente exercido pelos governos sobre os assuntos internacionais. E de maneira sugestiva o fizeram fora dos canais usuais da representação política, os partidos, os parlamentos e também do exterior de todas as instituições do “establishment”: igrejas, sindicatos, universidades.

Há matéria aqui para refletir sobre o descrédito em que mergulharam essas instituições, mas não como razão para pessimismo. Ao contrário, temos razões de sobra para nos alegrar com a capacidade da gente comum de inventar novos canais e instrumentos de ação, de certa forma ressuscitando a velha democracia direta dos gregos. E, demonstrando, de passagem, que a democracia continua a ser idéia perigosa, sempre capaz de rebrotar de estiagens e geadas.

Três episódios significativos revelaram, nos meses recentes, a energia que adormece no seio da sociedade e pode ser subitamente liberada pela iniciativa de grupos de cidadãos motivados e organizados:

1) O torpedeamento das negociações do código de investimentos;
2) A assinatura do tratado de proibição das minas antipessoais;
3) A conferência de Roma na qual se estabeleceu o tribunal criminal internacional.

O primeiro caso foi notável porque as ONGs conseguiram se servir da Internet, instrumento por excelência da globalização, para revertê-la contra uma das metas preferidas da mesma globalização: tornar o mundo seguro para as transnacionais. A história já foi contada, mas não custa nada repeti-la. Em aditamento ao que obtiveram na Rodada Uruguai em liberalização comercial, os países industrializados resolveram repetir a façanha em investimentos, desta vez no seu clube “privé”, a OCDE, onde só entra país rico.

Iniciaram, assim, a negociação de vasto código de investimentos, não apenas para garanti-los, como seria legítimo, contra o risco de expropriação injustificada, mas concedendo às transnacionais todos os direitos, sem contrapartida de um mínimo de deveres e amarrando as mãos dos governos receptores dos investimentos em relação à possibilidade de dirigi-los de acordo com prioridades nacionais.

A negociação era conduzida sob “rigoroso hermetismo”, como se dizia na Buenos Aires do meu tempo, com a pretensão, uma vez concluído o texto, de convidar países como o nosso a assinar em cruz na linha pontilhada. Acontece que algumas ONGs, tanto de nações avançadas como de subdesenvolvidas, resolveram mover pela Internet campanha extremamente articulada, por meio da qual divulgaram o texto provisório e cada pormenor da negociação, despertando a opinião pública para os desequilíbrios e perigos da iniciativa e obtendo pronunciamento condenatório do Parlamento europeu. A negociação teve de ser suspensa em maio e recebeu agora o golpe de misericórdia com a decisão da França de abandonar o barco.

O extraordinário do episódio é que se logrou, pela primeira vez, furar o bloqueio de informação armado por todos os meios de imprensa em torno de assuntos como esse e que até agora impedira que a opinião pública dos próprios países ricos se desse conta do que estava acontecendo.

A vantagem da Internet é que ela não depende dos donos de jornais, rádio ou televisão e pode ser usada por qualquer pessoa com “um computador na mão e uma idéia na cabeça”. Criou-se, assim, um espaço público, não dominado pelo dinheiro, uma espécie de ágora dos gregos, a praça pública na qual se podem debater os grandes temas da democracia direta do futuro.

Da mesma forma, nos dois exemplos do tratado antiminas e da corte penal internacional, como nos investimentos, as ONGs obtiveram o apoio de alguns governos, mas tiveram de lutar contra a vontade dos detentores do poder, prevalecendo mesmo sobre essa oposição.

Para a sociedade como a brasileira, injustamente acusada de passividade e anomia, mas na verdade vítima há séculos de manipulação e opressão, esse desenvolvimento cria a esperança de podermos enfim começar a nos organizar contra os donos do poder e os moedeiros falsos da informação e do “marketing” político.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 07/11/1998.