Pouco antes da Revolução Francesa, as finanças do reino tinham chegado a ponto tão calamitoso que Luís 16 se resignou a confiá-las a Calonne, tipo do qual não se esperava muito, mas que parecia o menos ruim dos candidatos. Após alguns anos de largueza e esgotada a possibilidade de levantar empréstimos, o ministro tomou coragem e resolveu impor aos nobres o desagradável dever de pagar impostos.

Criou uma subvenção territorial, mas, para aprová-la, teve de convocar a Assembléia dos Notáveis. Indignados com a audácia, os aristocratas fizeram publicar panfleto no qual uma caricatura representava Calonne como macaco fantasiado de cozinheiro-chefe do restaurante da corte. À sua frente, os nobres, figurados como patos, perus e galinhas, com os quais o mestre-cuca trava o seguinte diálogo:

“Meus caros administrados, convoquei-os para perguntar com que molho desejam ser comidos”.

Resposta: “Mas nós não queremos ser comidos de forma alguma”!
Ministro: “Vocês estão saindo da questão”.

O final é previsível. Os notáveis rejeitaram o imposto territorial, o rei cedeu e demitiu Calonne. Dois anos depois estourava a Revolução, da qual a convocação da Assembléia dos Notáveis é considerada o primeiro ato.

Narrei essa fábula não para insinuar qualquer semelhança com a resistência brasileira à reforma agrária ou à cobrança do imposto territorial e a consequente radicalização e violência. Desta vez quero aplicá-la à situação que acabo de testemunhar em Paris na reunião ministerial da OCDE.

Essa organização, que reúne os países ricos e industrializados, iniciou, há dois anos, a negociação de uma espécie de código mundial de investimentos. A fim de dar-lhe caráter mais amplo, convidou certo número de nações em desenvolvimento, dentre as quais a nossa, a acompanhar a negociação como observadores sem possibilidade, a não ser marginal, de influenciar-lhe o conteúdo, mas com pleno direito a pagar a conta.

A reação não veio destas últimas, que, na caricatura francesa, provavelmente seriam incluídas no meio dos patos, dada a conhecida característica da categoria.

Ela se deu, ao contrário, onde menos se esperava, no interior dos próprios países avançados, a começar pelos parlamentos, as ONGs e os sindicatos. O Parlamento Europeu votou, por maioria esmagadora, resolução enumerando mais de 20 requisitos mínimos não-incorporados ao texto do acordo em negociação.

Por seu lado, o conselho sindical assessor da OCDE se insurgiu contra a ausência de garantias aos trabalhadores, enquanto as ONGs condenaram sobretudo o que percebem como seu potencial destrutivo em matéria ambiental.

O pior, contudo, resultou das contradições e conflitos de interesses dos próprios governos. Os autores da proposta sempre fizeram questão de dizer que desejavam um acordo de “padrões elevados”, isto é, com raras e circunscritas exceções à liberdade mais ampla possível de investimento e poucas limitações aos numerosos direitos dos investidores (não se mencionam seus deveres). Ora, os norte-americanos, que mais insistiram nesse ponto, acabaram por introduzir uma exceção gigantesca, o poder extraterritorial de punir investidores de terceiros países, franceses ou italianos, por exemplo, “culpados” de investir em nações como Cuba, Irã, Líbia ou Iraque, designadas nas leis Helms-Burton e D’Amato.

Aberta a chamada brecha da segurança nacional, outros como a França e o Canadá invocaram a defesa da identidade cultural, a fim de evitar o controle estrangeiro da TV, do rádio, dos jornais, da indústria cinematográfica e editorial. As exceções se multiplicaram em nome da proteção ambiental, da necessidade de impedir que os baixos salários estrangeiros prejudicassem os trabalhadores dos países ricos etc.

Governadores de três províncias canadenses declararam que não acatariam o acordo e a oposição se alastrou ao Congresso dos EUA. Reconhecendo não dispor de apoio político para continuar a negociação, o governo francês propôs sua suspensão formal, por seis meses. Para salvar as aparências, decidiu-se finalmente que haveria uma “pausa” até outubro e, no futuro, dependendo da evolução, as negociações poderiam prosseguir na Organização Mundial de Comércio.

Absorvidos pelas dramática vicissitudes do nosso país, os leitores brasileiros não se darão conta talvez da importância histórica do que vem de se passar: trata-se, nem mais nem menos, da primeira crise maior da globalização em nível de governos de países avançados, o primeiro revés sério do rolo compressor que vem promovendo a liberalização econômica até recentemente.

O problema ocorreu com os investimentos porque nesse domínio, como observou a professora canadense Silvia Ostry, se manifesta no ponto mais exacerbado a internacionalização da agenda política doméstica, isto é, as questões até agora decididas na esfera da soberania de cada país passam a depender do nível internacional. Isso significa simplesmente que, ao aceitar um acordo do gênero, o governo abre mão de parcela adicional de sua autonomia. Por exemplo, já não lhe seria possível reservar certos setores como o petróleo à ação estatal, outros como a propriedade dos jornais, rádio e TV a nacionais, ou proteger o cinema contra Hollywood, impor limitações à remessa de lucros e à repatriação de capitais, a adotar normas para a transferência de tecnologia etc.

A consequência lógica da passagem de tais questões para a esfera internacional é que a sociedade civil, os parlamentos, os sindicatos, querem também ser ouvidos nesse nível, da mesma forma que sempre exigiram ser escutados no plano doméstico.

Foi por terem esquecido esse pequeno detalhe que os cozinheiros do acordo sobre investimento se defrontam com a revolta do galinheiro. Saber se as aves têm razão em não querer ser comidas é, porém, problema que vai além da escolha do molho e exige futura análise que farei oportunamente.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 02/05/1998.