Quase tudo nas eleições francesas pode ser relativizado, menos a gravidade do seu significado principal: no país da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Revolução de 1789, um em cada cinco eleitores votou em partidos racistas e xenófobos da extrema direita, herdeiros históricos do nazi-fascismo, do colaboracionismo, da repressão colonialista na Argélia. Esse é um fenômeno diferente do outro choque produzido pelo cataclismo eleitoral, a eliminação, no primeiro turno, do chefe de um governo geralmente creditado com altos índices de aprovação, conforme se podia ver nas sondagens da véspera.

Não são exatamente as mesmas as causas dos dois acontecimentos e, para bem compreender o que se passou, é preciso partir da configuração político-eleitoral da França, que a torna um caso à parte na Europa, no Ocidente e no mundo. O país está hoje, de fato, dividido em três grandes blocos heterogêneos entre si, mas sem unidade interna, correspondendo cada um aproximadamente a 30% ou a um terço, um pouco mais, um pouco menos, do eleitorado. Os dois primeiros fazem parte do “establishment”, como dois pólos que se alternam no poder: a direita moderada, de governo ou republicana, como se autodefine, isto é, Chirac e seus aliados, herdeiros do espólio do general De Gaulle, e a constelação de esquerda, em que gravitam, em torno do Partido Socialista fundado por Miterrand, formações que vão dos Verdes ao Partido Comunista, passando por Jean Pierre Chevènement. O terceiro bloco é formado pela soma dos 20% da extrema direita (Le Pen e Mégret) com os 10% da extrema esquerda trotskista. Seus componentes não têm, é claro, nada em comum entre si, salvo partilharem a condição de párias de um sistema que contestam radicalmente e que, por seu turno, os rejeita, considerando, por exemplo, impensável mesmo uma aliança tática com eles.

A França contemporânea, digamos dos últimos 40 anos, foi o produto da engenharia política de De Gaulle e de Miterrand. O primeiro dotou-a de originalíssimas instituições políticas, uma constituição que combina um presidencialismo forte, uma espécie de bonapartismo, com o regime parlamentar. Completando a obra institucional, o general promoveu a federação do centro-direita tradicional e conservador, isolando os ultras da Argélia e os remanescentes do colaboracionismo. Miterrand fez o mesmo com o centro-esquerda, atraindo e domesticando os mais perigosos “outsiders” da época, que eram os comunistas, e relegando a um canto os grupúsculos trotskistas. Foi isso que deu ao país algumas décadas de estabilidade, ameaçada agora a partir do momento em que os marginais dos dois extremos deixam de ser uma franja insignificante para passar a constituir parcela significativa (e crescente) do eleitorado.

Abstenção, divisão, decepção, os três substantivos explicam, em termos imediatos, os números do escrutínio. Quase um eleitor em três (28%) não se deu ao trabalho de votar. O desinteresse prejudicou os dois favoritos, entre os quais se dizia que era difícil perceber diferenças programáticas marcantes. Olhando-se não as porcentagens, mas o número absoluto de votos, constata-se que a perda foi maior para Chirac do que para Jospin. Com efeito, somando os votos dos cinco candidatos que faziam parte do governo Jospin, a “esquerda plural” perde 1,5 milhão de votos em sete anos, cifra muito próxima aos ganhos da extrema esquerda (1,36 milhão). Já Chirac recua de quase 4 milhões de votos, dos quais só 900 mil foram para Le Pen. A conclusão é que muitos dos ex-eleitores do presidente preferiram simplesmente não votar.

A dispersão do centro-esquerda foi obviamente a causa de sua ruína. Em lugar de realçar o que os unia, os integrantes do gabinete escolheram dar ênfase às suas diferenças. Apostaram que, ao acentuarem a busca da própria identidade, cresceriam aos olhos do eleitor. Perderam de forma desastrosa, talvez, diriam alguns, porque essa identidade não foi suficientemente nítida para configurar uma verdadeira alternativa como a oferecida pelos extremos. Mais uma vez, a divisão de uma esquerda em crise de identidade conduz à derrota, como já tinha ocorrido em outros países. Continuam a parecer inconvincentes as tentativas de definir “terceiras vias” entre o velho comunismo defunto e a globalização neoliberal. O público aparentemente partilha a opinião de Le Pen de que o original é sempre melhor do que a cópia…

Nesse sentido, é também significativo que essa eleição marque talvez o fim do Partido Comunista francês, humilhado pela votação individual de dois dos três candidatos trotskistas, à beira da bancarrota financeira por não poder ressarcir-se com dinheiro oficial dos gastos da campanha devido à baixa porcentagem obtida (3,3%). Nos antigos bastiões comunistas como Calais e na periferia operária das grandes cidades, na França do leste, onde foi mais brutal o choque do fechamento de fábricas, do afluxo de imigrantes, do desemprego de massa, a decepção com a participação do PC no governo levou seu eleitorado a transferir-se para a extrema esquerda e, às vezes, para Le Pen. Votaram neste último um em cada três desempregados e um em cada quatro operários. O líder extremista revelou-se, da mesma forma que seus predecessores de infame memória, Hitler e Mussolini, exímio manipulador do medo e da desesperança.

Sua especialidade é a demagogia da insegurança, tema que sabe como ninguém explorar em todos os seus registros, da ansiedade em relação ao emprego e à aposentadoria até do medo da violência e do crime. Não lhe faltam também os inimigos de raça, os bodes expiatórios, menos os judeus dessa vez e sobretudo os imigrantes, negros ou árabes, demonizados como os que roubam o trabalho aos nacionais e alimentam as hordas de delinquentes da periferia.

É cedo ainda para dizer se essa eleição calamitosa anuncia uma crise terminal para a quinta República. Esse é o temor de analistas que evocam as frases com que Chateaubriand descrevia o fim de outros regimes, em circunstâncias similares de aparente normalidade, até prosperidade, como as atuais: “Uma nação não sente falta de nada; ela desfruta de todas as riquezas da terra, de todos os tesouros do céu e eis que de súbito ela tomba no delírio? Por quê? É porque ela trazia em si uma ferida secreta que seu governo não soube curar”. Num país onde a idade mediana do eleitor se aproxima dos 50 anos, o destino do regime vai depender de sua capacidade de tratar essa ferida do medo, da insegurança, da precariedade, da perda de esperança no futuro.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/04/2002.