“Assim como Pearl Harbor despertou o país da ilusão de que poderia evitar o dever de defender a liberdade na Europa e na Ásia na Segunda Guerra Mundial, esse mais recente ataque de surpresa deveria obliterar a convicção de alguns setores de que os Estados Unidos são capazes de lidar sozinhos com o terrorismo ou qualquer problema do gênero.” Ao transcrever essa frase, o “The New York Times” observava, no dia 19, que ninguém insinuaria que ela representasse crítica ao governo do presidente Bush, muito menos seu autor, que não é outro que o pai e predecessor do presidente. Trata-se, segundo o jornal, “de inconfundível esforço do pai para afirmar que seu filho estava rompendo com o passado recente”.
Há, para nós, várias lições a tirar do episódio. A primeira é que, da mesma forma que os americanos, temos de saber interpretar os sinais dos tempos e compreender que nem os EUA nem o mundo serão os mesmos depois do que aconteceu há menos de duas semanas. A segunda lição é que, em nosso caso, as consequências serão menos político-militares e mais econômicas e que precisamos conduzir revisão profunda das premissas inspiradoras das nossas relações com a economia internacional, antes de sermos a isso forçados pelos acontecimentos.
Embora tenha causas distintas, a recessão mundial é parte do mesmo fenômeno de aumento de insegurança e perda de controle do sistema internacional presente na proliferação do terrorismo. Suas origens se encontram, entre outras, na incapacidade dos grandes de coordenar e cooperar efetivamente na condução de suas políticas macroeconômicas. Sabia-se do risco de uma desaceleração ao mesmo tempo de todas as locomotivas do mundo avançado, houve inúmeras advertências contra as loucuras das Bolsas ao dirigir trilhões de dólares a investimentos especulativos em telecomunicações, mas nada se fez para evitar que se confirmassem as profecias.
Se há alguma coisa que se tornou menos incerta como resultado do ataque terrorista, é precisamente a perspectiva imediata da economia americana e da internacional, neste momento muito mais sombria do que antes. Até então, era só a confiança dos consumidores que freava um pouco a economia na ladeira ensaboada da recessão. Ora, quase na véspera do dia fatídico, a Universidade de Michigan revelara que o índice de confiança tinha caído 7,9 pontos, mais do que no início da recessão de 91-92. A esse movimento ladeira abaixo, temos de somar agora o empurrão adicional imprimido pelo trauma brutal e direto no coração do país, o qual deve provavelmente ser considerável (quando ocorreu a invasão do distante Kuait, o índice despencou 11,8 pontos). A confiança é afetada sobretudo pelo nível de emprego, a valorização das Bolsas e as expectativas de lucros, todos em queda acentuada. O desemprego, por exemplo, pode chegar a 100 mil nas companhias aéreas e a 30 mil na Boeing, além do milhão de pessoas que deixou de trabalhar nos últimos meses.
O cenário internacional é igualmente gelado: crescimento anêmico, talvez pouco mais de 1%, o comércio passando dos espetaculares 12,5% do ano passado para talvez 3% neste (se tanto). Em relação aos investimentos diretos, a Unctad acaba de publicar sua estimativa para o corrente ano: eles desabarão 40%, o maior colapso em três décadas (entre os industrializados, a queda será de 49%; para os países em desenvolvimento, a queda é menor: 6%).
É pouco provável que o panorama melhore muito até pelo menos a segunda metade do ano próximo. Tentar enxergar mais longe é tarefa quase impossível. Em parte, a complicação vem da semântica. Repete-se que estamos no limiar da primeira guerra do século 21, mas desconfia-se de que se trata de guerra de características bem diferentes das do passado. Só conhecemos da estratégia americana as linhas gerais, e isso é muito pouco: haveria dois tempos na campanha, o primeiro circunscrito a liquidar a organização responsável pelo assalto recente e seus protetores; o segundo dirigido mais amplamente contra “outros”, organizações e países indefinidos aparentemente a ser ainda identificados. Quanto tempo durará isso tudo, que tipo de operações será necessário, haverá ou não efeitos sobre os produtores de petróleo, quais os custos em vidas e perdas econômicas? Ninguém sabe. A incerteza alimenta a volatilidade dos mercados, que a detestam tanto ou mais do que o medo da guerra. Também mantém viva a discussão entre os economistas sobre o caráter temporário ou duradouro dos efeitos.
Para nós, isso é irrelevante, pois mesmo o temporário, isto é, até meados de 2002, já nos cria perigo grave. No último “Global Data Watch”, da JP Morgan (14/9), o Brasil divide com a Turquia o duvidoso privilégio de concentrar a preocupação dos mercados devido ao aumento dos “spreads”. O boletim acrescenta que a Turquia tem a vantagem de uma posição estratégica de aliada e fornecedora de bases vitais para os EUA no Oriente Médio.
É claro que devemos fazer a nossa parte no esforço comum contra os autores dessa monstruosa atrocidade. No entanto o próprio exemplo citado acima mostra que é limitado nosso papel no terreno militar. Em contraste, a tendência é para que estejamos entre as primeiras vítimas das consequências econômicas colaterais da deterioração mundial. O motivo é sempre o mesmo: aumentou perigosamente a nossa vulnerabilidade em razão da dependência financeira do exterior, produto, por sua vez, da premissa de que a integração à globalização financeira nos permitiria financiar sem sustos os nossos déficits. Não será acaso temeridade mortal persistir nessa ilusão?
Na última grande guerra, países como o Brasil e a Argentina até que não se saíram mal: exportaram alimentos, matérias-primas, acumularam com o exterior gigantescos saldos, pois não havia manufaturas para importar, tiveram de substituir as importações com a indústria doméstica, não por escolha protecionista, mas porque precisavam implorar a Washington para ter direito a comprar pequena cota dos escassos produtos industriais disponíveis para o que não fosse o esforço de guerra. Aliás, o Brasil já voltara a crescer mesmo na Grande Depressão, pois conseguiu rever em tempo as premissas da sua política orçamentária e de dívida externa à luz das mudanças no cenário internacional. Na crise dos 30 e da Segunda Guerra, o país soube responder. Seremos agora capazes de ler os novos sinais dos tempos, diversos dos daquela época, mas igualmente desafiadores?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/09/2001.