Barbosa Lima Sobrinho completa 103 anos quando reacende entre nós o debate nacionalista. Estive entre os que assinaram a saudação para prestar-lhe homenagem pela trajetória de límpida coerência, destacada em artigos de Evandro Lins, Fábio Comparato e Wilson Figueiredo. Fiéis a seu exemplo, devemos discutir de forma desapaixonada e objetiva como se apresentam os fatos, não as ideologias, nessa chamada questão da desnacionalização da economia.

Precisamente nesta semana um jornalista de São Paulo enviou-me sobre o tema questionário a que respondi por carta. Consciente de que as entrevistas pouco aproveitam o que dizemos, partilho com os leitores o que declarei a respeito das aquisições de bancos por estrangeiros e da repercussão das declarações do presidente do BNDES.

Sobre os bancos, o que mais me impressionou foi a entrevista de Fernão Bracher à Folha há algumas semanas. Ele levanta ponto fundamental: se o sistema bancário estivesse mais desnacionalizado na crise da desvalorização, em janeiro de 99, o governo não teria conseguido rolar a dívida interna porque as matrizes estrangeiras dificilmente teriam tido o comportamento de entidades nacionais, como o Bradesco, o Itaú e o Unibanco. Pode ser verdade ou não, e, de minha parte, não tenho conhecimento bancário para responder. Bracher é homem de integridade indiscutível, de espírito público provado em várias passagens pelo Banco Central, insuspeito de ser motivado por interesses concorrenciais com os estrangeiros. Fala pouco, mas, quando fala, é com coragem e autoridade, como fez ao demonstrar, em hora difícil, a insustentabilidade da política do câmbio valorizado. Se ele tiver razão nesse ponto, as consequências seriam tais que mudam por completo os termos do debate.

Prefiro, nessa discussão, limitar-me aos aspectos de comércio exterior com que estou mais familiarizado. Desse ponto de vista, identifico três questões centrais na análise do aumento sem precedentes do investimento estrangeiro direto (IED), a saber:

1ª) Qual será o impacto dessa massa de IED no balanço de pagamentos e no de contas correntes a médio e longo prazo? Ou, em termos distintos, o IED alivia ou agrava a longo prazo o chamado “estrangulamento do setor externo”, sabidamente um dos obstáculos crônicos ao crescimento rápido da economia?

2ª) Esse IED, não em hipótese, mas na sua realidade atual, está aumentando a capacidade brasileira de exportar e gerar excedentes na balança comercial, saldos capazes de cobrir as remessas crescentes de lucros e dividendos inevitavelmente produzidas pelo capital ora investido? Quais são, de novo não em tese, mas na “batata”, na realidade concreta, aqui e agora, os exemplos de IED dirigidos sobretudo ao comércio exterior, e não ao mercado interno, e, por conseguinte, com o potencial de contribuir para expandir a capacidade exportadora, renovando uma pauta estagnada há duas décadas?

3ª) Qual tem sido o impacto das aquisições de firmas nacionais, como a Metal Leve, a Cofap, as empresas eletrônicas e de telecomunicações de Campinas, na capacidade de gerar tecnologia própria? É ou não verdade que os novos donos reduziram drasticamente o gasto com pesquisa e desenvolvimento feitos no Brasil e preferem trazer a tecnologia pronta das matrizes ou apenas adaptá-la às condições brasileiras?

O ponto é importante pois a competitividade, agora e no futuro, vai depender cada vez mais da capacidade de gerar conhecimento. Será que isso está acontecendo no Brasil?

A algumas dessas perguntas a resposta só pode ser dada por quem investigar o que se está passando no terreno dos fatos. Longe do país há cinco anos, não quero arriscar respostas categóricas que se revelem ou infundadas ou parciais e exageradas. Além de exprimir o que os hispânicos chamam de “inquietud”, permito-me, no entanto, sugerir algumas pistas de aproximação.

Julgo que o tema deva ser tratado de forma empírica, pragmática, não a partir de perspectivas ideológicas. O IED, do mesmo modo que o financiamento externo, não é, em si mesmo, bom ou mau. Depende do fim para o qual é utilizado e os efeitos concretos que produz. Se o IED libertar o país do “estrangulamento externo”, gerar saldos em conta corrente, trouxer capacidade adicional de exportar, melhorar a capacidade tecnológica ou gerencial e, acima de tudo, ampliar a insuficiente taxa de investimento da economia, terá cumprido papel útil. Como, porém, maximizar os benefícios do IED e minimizar seus riscos?

Aqui, como em todas as áreas do desenvolvimento, a qualidade das políticas públicas, a começar pelas macroeconômicas, faz enorme diferença. Enquanto mantivemos moeda artificialmente valorizada (e durou mais de quatro anos), era impossível a um “chief executive” de uma transnacional convencer a sua diretoria a fazer no Brasil um investimento orientado para exportar a partir de plataforma brasileira. Afinal, os próprios empresários nacionais não exportavam. De igual maneira, a política de juros, o sistema de impostos, a existência ou não de incentivos à pesquisa, tudo isso é que, em última análise, vai decidir a forma que há de assumir o IED. Com isso rejeito a volta às políticas ineficazes ou corruptas ou compulsivas, intervencionistas, de que abusamos, o pior exemplo das quais foi a política de informática (muitas dessas políticas, aliás, estão hoje proibidas pela OMC). Não faltam, todavia, exemplos de grande maestria no uso de políticas inteligentes e adequadas para esse fim, como as utilizadas por Cingapura, Taiwan e outros.

A falta de política não é uma política. Se somos incapazes de formular políticas coerentes e eficazes, não haveremos de ser salvos por tolices como “a mão invisível do mercado”. Quem tenta tirar a castanha do fogo com a mão do gato acaba descobrindo que o gato engoliu a castanha e só lhe deixou as cascas, se estiverem queimadas demais…

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/01/2000.