Quando Tancredo Neves se avistou com Felipe González, pouco antes da posse que nunca haveria, ouviu do primeiro-ministro conselho que o impressionou: “Escolha um bom ministro da Economia e 80% dos seus problemas estarão resolvidos”. A fórmula fazia sentido, mas não funcionou nem no seu país de origem, a Espanha, onde o governo Aznar era geralmente creditado de boa gestão econômica e de ter reduzido o desemprego, até então o mais alto da União Européia. Nada disso impediu que o ministro da Economia, Rodrigo Ratto, fosse vaiado e quase agredido na manifestação de Barcelona contra o atentado de 11 de março e o governo acabasse perdendo a eleição.
Se os socialistas espanhóis ganharam contra um governo economicamente exitoso, seus companheiros gregos do Pasok fizeram a amarga experiência contrária: perderam, apesar de contarem a seu favor dois governos sucessivos e oito anos contínuos de gestão econômica positiva. Da mesma forma que havia ocorrido com os socialistas franceses de Lionel Jospin, estrepitosamente derrotados em 2002, contra o pano de fundo favorável de economia em expansão e desemprego em baixa.
Tudo indica, assim, que querer reduzir o intrincado jogo eleitoral à mera questão de conjuntura econômica é no mínimo exagero e no máximo simplismo grosseiro. Se, em circunstâncias normais, um desempenho econômico expansionista é condição quase sempre necessária e, na maioria das vezes, útil ao sucesso nas eleições, ele não basta, por si mesmo, para garantir esse resultado.
Tampouco se pode atribuir o que vem acontecendo nas eleições européias a fatores ideológicos, tais como uma suposta tendência ao retorno das esquerdas ao poder. Com efeito, as esquerdas venceram na Espanha e na França, mas foram derrotadas na Grécia e provavelmente perderiam na Alemanha se as eleições fossem amanhã.
Para alguns, a explicação deve ser buscada no que os franceses chamam de “maldição dos dois anos”. De acordo com Mitterrand, a experiência empírica ensinaria que todo governo se desgasta inapelavelmente após chocar-se contra a realidade durante aproximadamente um biênio. Esse período de duração média poderá ser dilatado ou contraído, segundo a época for propícia ou adversa. No fim das contas, porém, todo império há de perecer e todo governo de homens é destinado à decadência e à morte. Que se pode dizer de mais, além dessas banalidades?
Talvez convenha lembrar que, em tempos excepcionais como os nossos, é preciso desconfiar do comportamento de regras feitas para fases de normalidade. As eleições espanholas se realizaram dias, horas apenas após atentado de brutalidade sem precedentes. Não é surpresa que fatores emocionais de força incalculável pesassem no ânimo dos eleitores. Aliás, o líder socialista vitorioso reconheceu essa realidade e declarou que levaria em conta, ao governar, o caráter atípico da maioria conquistada.
Situação de extraordinária excepcionalidade é também a que caracteriza a imprevisível sucessão norte-americana. Essas serão as primeiras eleições presidenciais após o 11 de Setembro, em país que, desde então, já se envolveu em duas guerras, contra o Afeganistão e o Iraque, e continua mobilizado como que em guerra permanente. Não fosse isso, caberia dizer que, apesar da incipiente recuperação, a situação econômica no atual período presidencial está longe de favorecer a vitória. Conforme lembrou um comentarista britânico, durante o mandato do presidente Bush, os EUA tiveram a primeira perda líquida de empregos desde Herbert Hoover, o maior declínio na Bolsa desde Carter e a pior deterioração do Orçamento desde Roosevelt, o qual tinha ao menos uma guerra mundial pela frente.
Nenhum cataclismo comparável se abateu sobre a França e, no entanto, a reviravolta eleitoral foi tão esmagadora e completa que produziu o efeito de um terremoto político. No domingo passado, dia do segundo turno, desembarquei em Paris, vindo da China, e resolvi ir ao Jardim de Luxemburgo. Nessa ensolarada e cálida jornada de primavera, quase verão, multidão impressionante se acotovelava, disputando os primeiros raios de sol. Imaginei que, na melhor tradição européia, a abstenção bateria todos os recordes. Foi o contrário, o maior índice de participação em eleições regionais. As pessoas queriam obviamente sancionar o governo, votar contra um sistema acusado de insensibilidade diante dos protestos sociais, de conduzir, com obstinação, política econômica e social rejeitada por parcela significativa da população, que não lhe havia conferido mandato para tanto.
Assim como parte do mandato de Rodríguez, Zapatero proveio não dos socialistas mas dos inconformados com a manipulação das investigações do atentado, uma proporção considerável dos 82% de Chirac em 2002 vinha de gente de esquerda, decidida a barrar o caminho da extrema direita. Ao ignorar tal realidade, o governo rompeu o vínculo de confiança indispensável na relação governantes-governados e foi punido por isso. A construção da confiança e sua preservação, mediante ação governamental que não frustre as expectativas criadas na campanha, são possivelmente os únicos fatores que não se devem subverter em nenhuma circunstância, sob pena de provocar condenação por parte dos eleitores.
Não sei se, desses episódios em países tão diferentes do nosso, haveria alguma lição aplicável ao Brasil. Pelo que possa valer, contudo, lembro as seguintes possíveis semelhanças entre as duas situações. Em ambos os casos, as eleições eram locais, mas, no primeiro, acabaram virando oportunidade de julgar o governo central. A situação econômica é de crescimento baixo e desemprego alto, no Brasil ainda pior que na França. A resistência à reforma da Previdência, a decepção e a desafeição dos militantes com relação às expectativas geradas anteriormente, o debate sobre se teria ou não existido mandato popular claro à política econômica são similares. E o principal, talvez, é que os dois testes coincidem exatamente com a “maldição dos dois anos”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/04/2004.