Mãe de todas as marchas, inspiradora das que empreenderia Martin Luther King em favor dos negros, a Marcha do Sal de Gandhi foi, como disse um pensador hindu, “um extraordinário ato para imaginar a política como uma prática ética”. No seu 75º aniversário, assisti na Índia à recriação histórica da partida do Mahatma com 78 seguidores, em 12 de março de 1930.

Ao lançar o movimento de desobediência civil contra a taxa criada pelos ingleses sobre o sal, Gandhi quis pôr em relevo que eram os pobres os destinatários de sua ação. Segundo escreveu a Lorde Irwin, o vice-rei da Índia: “Considero essa taxa a mais iníqua de todas do ponto de vista do pobre. Como o movimento da independência visa essencialmente aos mais pobres do país, começaremos por esse mal”. De um golpe, ele converteu causa até então confinada a uma elite social desejosa de liberdade política em luta pela emancipação política e econômica de todo um povo. Na palavra de um participante: “À medida que avançava a marcha (…), víamos a história do mundo mudando debaixo de nossos próprios olhos (…), a Índia em peso levantava-se com fé e entusiasmo reacesos”.

Após 25 dias e quase 400 quilômetros, os andarilhos molharam os pés fatigados nas águas do mar em Dandi. Um montículo de sal tinha sido preparado para que o Mahatma recolhesse um punhado sem pagar a taxa. Repetido por 2 milhões de pessoas em todo o país, o gesto punha em xeque a lei iníqua e o poder ilegítimo do qual emanava.

Os ingleses lotaram os cárceres com 60 mil “ofensores políticos”, mas só ousaram prender Gandhi um mês depois, enviando um bando armado para despertá-lo no meio da noite. A essa altura, o Império Britânico havia perdido a batalha moral e política diante da “Grande Alma”.

Obra-prima de mobilização política de massa, a reinvenção por Gandhi da peregrinação religiosa demonstrou que a não-violência e a desobediência civil eram estratégias viáveis na luta pela independência. O sal foi a chave simbólica para explicar às massas o que significava a liberdade. Não se tratava apenas de substituir o dominador estrangeiro por um nacional. O que estava em jogo era o direito do povo à propriedade dos recursos comuns do país.

Havia sempre, em toda ação política do Mahatma, uma lógica moral que se estendia além da prioridade imediata. No caso da taxa do sal, ocorrera uma ruptura da confiança entre o governo e o povo, ao qual caberia o controle dos recursos naturais. A taxação só se justificaria para reduzir as disparidades de riqueza. Ao utilizá-la para onerar recurso do qual necessitavam até os mais pobres entre os pobres, o poder tinha rompido a confiança e usurpado a propriedade coletiva.

Marchas há de todo gênero. Oito anos antes da hindu, houve a dos fascistas de Mussolini sobre Roma. Em meados dos 30, a Longa Marcha de Mao contrastou com a de Gandhi, cuja originalidade era que ele não amava o poder e, como disse Rabindranath Tagore, não amava tanto as idéias quanto os homens.
Tem o Brasil também sua marcha, que, por coincidência, é pelo acesso à terra, recurso natural que deveria ser mais bem repartido. Aqui se vive igualmente caso extremo de ruptura de confiança entre eleitores e governantes em torno do mandato saído das eleições. No entanto, a marcha nacional se cumpre debaixo da mais implacável malevolência de quase toda a imprensa e da indiferença social calejada em quatro séculos de cativeiro.

O MST terá seus pecados, excessos e erros, mas nem por isso deixa de nos interpelar a questão que coloca pela sua mera teimosia de existir: por que um país que tem justo orgulho de sua moderna agricultura de exportação não consegue eliminar a abjeta miséria do homem do campo? Por que a eficiência e a técnica se alcançam apenas ao preço da concentração da propriedade e do bem-estar, da expulsão e desemprego em massa da mão-de-obra, da propagação de favelas e bóias-frias até nas zonas pioneiras mais prósperas?

Se alguém duvida de que há nessas perguntas valores morais envolvidos, basta que responda com honestidade em seu foro íntimo: de que lado ficariam, da marcha da terra ou de seus detratores, o Mahatma Gandhi e Martin Luther King?
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“Agradeço a Wolfgang Gruen, salesiano, Belo Horizonte, pela amabilidade do envio da versão correta do último verso do belo soneto “On his blindness”, de Milton, que citei (errado) de memória no artigo “20 anos sem Tancredo”: “They also serve who only stand and wait”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15/05/2005.