A incapacidade de reformar instituições disfuncionais condena os povos mais talentosos ao desastre. Após a tragédia da guerra civil e do franquismo, a Espanha provou que é possível romper com o passado e reinventar instituições eficazes. Já a agonia interminável da Itália adverte sobre o destino dos que não têm apetite ou competência para mudar, como parece, infelizmente, o caso do Brasil.
Pouco antes da queda do gabinete, Fausto Bertinotti, o sofisticado comunista que preside a Câmara dos Deputados italiana, usou palavras de comiseração desdenhosa para comparar o governo Prodi a um “poeta morente”.
Como a Espanha, a Itália teve fascismo e guerra. Depois, 60 governos em 62 anos. De Gaulle declarou uma vez que a Itália tinha políticos de valor, mas carecia de instituições que permitissem colocar esses talentos a serviço do país. Sabia do que falava, pois salvara a França de doença similar, dando-lhe instituições que duram até hoje.
Qual o mistério que explica o gênio institucional que sobra nos suíços e falta nos russos e nos argentinos? Como explicar a persistência da desunião que destruiu a glória medieval e renascentista, entregando a Itália ao domínio dos “bárbaros”?
De vez em quando, um sobressalto de energia galvaniza a nação. A Operação Mãos Limpas prendeu empresários, exilou primeiros-ministros, causou suicídios e, por instantes, parecia refundar o país. Mas, como lembrava Cesare Pavese, “lavorare stanca”, trabalhar cansa. O ímpeto se gastou no caminho e ficou tudo inacabado ou malfeito: a reforma da Constituição, a eleitoral, a do federalismo, a dos partidos nanicos e a do controle da TV. Até os processos contra os corruptos se arrastaram e foram anulados na Justiça. Quase ninguém, salvo um ou outro “bagrinho”, chegou a cumprir pena. Lembra algum país?
Dizia-se que a instabilidade não tinha importância, já que não afetava o dinamismo da economia e a criatividade empresarial. Repetia-se Mussolini: “Não é impossível governar a Itália; é apenas inútil!”.
Hoje se sabe que não era verdade. Foi-se o dinamismo, a economia entrou em decadência, é ultrapassada pela Espanha, pela Irlanda, o mal-estar encontrou um símbolo nas montanhas de lixo ardendo nas ruas de Nápoles.
São perturbadoras as semelhanças com o Brasil. Escândalos, crimes, incapacidade de eliminar legendas de aluguel, de fazer reforma política decente, de acabar com a impunidade de máfias e políticos. Aqui também se diz que não faz diferença. A economia cresce, o governo forma maioria de coalizão sabe lá a que preço.
Será mesmo efetivo sistema político que em 80 anos acumula as revoluções de 30 e 32, o golpe de 37 e o Estado Novo fascistizante, o golpe de 45, o de 55, o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio, a ditadura militar de 21 anos, o impeachment de Collor, mensalões sem conta? O sistema disfuncional, sugere o exemplo italiano, é como um tipo de câncer demorado, que não atrapalha muito no começo. Ganha-se tempo, mas ganhar tempo só tem sentido se alguma coisa de útil se faz com o tempo adquirido.
Do contrário, quando a indesejada das gentes chegar, ela não será tão poética como a versão de que mais gosto da morte de Chopin: o poeta morre ouvindo os amigos que se revezam no piano tocando suas obras, até que, ao amanhecer, um último acorde anuncia que está tudo consumado.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/02/2008.