“É o processo de libertar a consciência pessoal e coletiva de todas as formas de ressentimento ou de violência que possam ter sido herdadas das culpas do passado.” Assim define o conceito a Comissão Teológica Internacional no documento publicado em 1º de março sob o título “Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado”.

Como atingir a purificação? “Mediante uma renovada valorização histórica e teológica dos eventos em exame, que conduza, se for justo, a um correspondente reconhecimento de culpa e contribua a um real caminho de reconciliação.”

Por que se intensificou tanto nos dias que correm o desejo de purificação, justiça e reconciliação? O gesto do papa é o mais recente e rico de sentido, mas foi precedido de muitos outros: comissões de verdade e justiça na África do Sul, na Guatemala, no Chile, na Argentina, no Haiti, tribunais internacionais sobre a Bósnia e Ruanda, exames de consciência dos bispos da França, da Alemanha, da Polônia, da Espanha.

O fenômeno é geral, transcende o catolicismo ou outras religiões e envolve governos, organizações, pessoas com ou sem fé. Ele exprime, no fundo, a convergência de duas atitudes. De um lado, a consciência coletiva de que o século 20 nos lega uma carga quase insuportável de monstruosos atentados à dignidade humana, ainda mais inexplicáveis à luz dos inegáveis progressos do século em economia, ciência e outros domínios. Do outro, a convicção de que a sinistra alma do século extinto não repousará em paz se não combatermos o veneno que ela espalhou no ar. Ou, como diz o documento citado, “porque as culpas passadas fazem frequentemente sentir ainda o peso de suas consequências e permanecem como outras tantas tentações mesmo hoje em dia”.

Fantasmas que pareciam olvidados voltam a assombrar os contemporâneos, como o das contas em bancos suíços de judeus vítimas do Holocausto, o das reparações a pagar aos raros sobreviventes dos trabalhos forçados, dos campos de extermínio, o das cumplicidades e covardias de governos e igrejas em relação ao nazismo, o da contrição aceita ou recusada pelos herdeiros do nazismo na Áustria, na Alemanha.

O que é encorajador nessa tendência é, primeiro, a recusa da resignação diante do historicamente consumado: sem reparação, ainda que imperfeita, a ferida da história continua sangrando, pois não permitiremos que ela cicatrize. Essa inconformidade, contudo, não provém da ânsia de vingança, mas de uma “ética do perdão”. Não é por acaso que, ao pensarmos nos gigantes morais que hão de dominar simbolicamente o século 20 naquilo que ele teve de mais nobre, não nos vêm à memória os representantes das ideologias ou do poder, mas três encarnações do perdão: Gandhi, Martin Luther King, o presidente Mandela. Um hindu, um pregador evangélico, um lutador da dignidade africana, três homens cuja autenticidade foi provada no martírio da vida ou da liberdade, mas que sempre souberam perdoar.

Não é apenas questão moral ou espiritual, mas problema de implicações políticas práticas. Sem reconciliação e reparação nunca haverá paz, não se deterá jamais o círculo infernal da vingança e do ódio, como se vê no Cáucaso, na ex-Iugoslávia, em Ruanda. A repressão pode retardar a explosão, mas ela vem sempre, pois, como sabiam os antigos portugueses, “ódio velho não cansa”.

Não se trata, como disse o papa, de julgamento sobre a responsabilidade subjetiva dos que nos precederam, pois só Deus está em condições de “sondar o coração e o espírito”. A responsabilidade no caso é a objetiva, a que se refere ao valor moral do ato em si mesmo enquanto bom ou mau. Nesse sentido, existiria entre o passado e o presente relação de reciprocidade que permite falar de uma “responsabilidade comum objetiva: a solidariedade objetiva entre os que fizeram o mal no passado e seus herdeiros no presente”. Essa noção de “responsabilidade por solidariedade” é de uma radical novidade, sem precedentes nos anais de 2.000 anos da igreja.

Em grande parte é uma iniciativa pessoal de João Paulo 2º, o qual já apresentara pedidos de perdão sobre vários temas no passado. Nunca antes, porém, um pontífice havia recapitulado o conjunto das culpas cometidas por todos os cristãos ao longo da história, assumindo a responsabilidade por elas e pedindo perdão a Deus e às vítimas.

As resistências foram grandes, da cúria, de meios conservadores, das igrejas na África e Ásia. Como resistir, no entanto, se a oração ensinada pelo próprio Jesus pede: “Perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos os que nos ofenderam”?

E nós, no Brasil, que não primamos pela coragem de olhar o passado como ele foi e pela honestidade de combater a continuação desse passado nos sofrimentos dos excluídos de ontem e de hoje? Um dos raros exemplos brasileiros desse tipo é um testemunho comovente de dom Luciano Mendes de Almeida. Entre a vida e a morte após grave acidente automobilístico, ele conta como, no leito de hospital, viveu dias a fio mergulhado no mundo da escravidão no Brasil, revivendo na memória de hoje as dores dos milhões de vítimas anônimas em que nunca pensamos. Não seria esta a ocasião de dedicar os 500 anos do Brasil à indispensável obra da purificação de nossa memória? Afinal seria uma forma tardia de honrar a lembrança da dignidade humana tantas vezes violada entre nós, evocando, como faz o documento papal, santo Ireneu quando afirmava: “A glória de Deus é o homem vivo”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/03/2000.