A abertura dos portos de 1808 foi fruto de eclipse fugaz da hegemonia inglesa. Ao contrário de crença disseminada, os britânicos desejavam coisa bem diferente: um porto exclusivo e direitos preferenciais.

Um privilégio só para Londres equivaleria a “uma espécie de escravidão”, como escreveu o marquês de Belas, um dos principais auxiliares de d. João 6º. Por sorte, tanto o embaixador inglês como quase todos os ministros portugueses não estavam na Bahia quando, em poucos dias, se tomou a decisão que era o começo do fim da colônia.

Nunca se quantificou o prejuízo que teve a economia brasileira no crepúsculo do regime colonial. Para o México, o peso dos impostos e restrições comerciais foi quase 35 vezes o ônus das taxas inglesas que provocaram a independência das colônias americanas. Em nosso caso, deve ter sido igual ou maior, dado o caráter espoliativo do colonialismo luso.

A fim de corrigir a liberalidade da abertura a todas as nações, o insolente embaixador inglês Strangford logo desembarcou no Rio de Janeiro. Era o mesmo que se havia gabado em comunicação a Londres: “Dei à Inglaterra o direito de estabelecer com os Brasis relação de soberano e vassalo e de exigir obediência como preço da proteção”.

Não demorou a que arrancasse da Corte os documentos passados à história com o vergonhoso nome de “tratados desiguais”. Um deles, o de comércio e navegação, fixava às importações britânicas tarifa de 15%, menos do que os 16% cobrados das lusitanas e dos 24% das demais!

Expirava com a tenra idade de dois anos o regime de igualdade comercial decretado na Bahia. No juízo do historiador português João Lúcio de Azevedo: “Ficava na prática derrogada a abertura dos portos a todas as nações e o Brasil pertencia de fato aos ingleses, como sempre tinham ambicionado”.

Os princípios de igualdade e não-discriminação, pilares da OMC (Organização Mundial do Comércio), cediam lugar à preferência e ao tratamento desigual a terceiros. O olhar contemporâneo sobre esse episódio da história ajuda a desmistificar armadilhas atuais. Compare-se o tratado de 1810 com a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Ambos falam de comércio livre, mas concedem direitos preferenciais. Nenhum dos dois ofereceu reciprocidade. Os britânicos proibiam a importação de açúcar, café e produtos brasileiros concorrentes de suas colônias. Os americanos não aceitam abrir o mercado para o suco de laranja ou o àlcool, que concorrem com a Flórida ou Iowa.

Até o juiz especial dos ingleses está presente na Alca sob a forma de arbitragem de conflitos sobre investimentos por jurisdição independente da Justiça brasileira. Após a Independência, os brasileiros não descansaram até sacudir os privilégios britânicos, não aceitando mais a tutela estrangeira.

Falta muito, porém, para realizar o ideal de Cairu, inspirador da abertura. Hostil a monopólios, o discípulo de Adam Smith acreditava nas virtudes da concorrência.

Na Federação do Comércio, em seminário nesta quarta-feira, tentarei tirar algumas lições do passado. A principal é que privatizar os portos sem regime concorrencial do transbordo rodoviário ao agenciamento de cargas é apenas substituir monopólio do governo por monopólios particulares, que dominam e encarecem as operações de nossos terminais, dois séculos após a abertura.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 25/11/2007.