“A inveja”, escreveu o Barão do Rio Branco em seu diário, “é a sombra da glória”.

A máxima era de Hoffmann, mas Paranhos a obedecia até em circunstâncias heróicas.

Em 1895, ao vencer a Argentina no arbitramento do território de Palmas ou das Missões, sua presença no Brasil era reclamada em manifestações de multidões arrebatadas. Sempre prudente, o Barão esquivou-se por crer que “há vitórias que não se devem comemorar”. Após agradecer aos que não só queriam homenageá-lo mas falavam nele para presidente, chegava, no telegrama, ao exagero de dizer que a decisão do presidente Cleveland em nosso favor “terá sido também recebida com satisfação na Argentina”. Dessa forma, afirmava, “este acontecimento feliz e honroso concorrerá para que se estreitem mais, como tanto desejamos, os laços de amizade que nos ligam aos nossos aliados de Caseros e do Paraguai”. Não querendo fazer provocação gratuita aos argentinos, preferiu voltar à sua residência em Paris, sem vir à pátria, de que estava ausente havia longos anos.

Quem assim agia era um estadista com senso de responsabilidade, que vivera por duas décadas obscuro na Europa e teria boas razões de querer banhar-se um pouco na doce brisa da fama, que só alcançava aos 50 anos. Além da sobriedade, havia no gesto o mesmo cálculo astuto que o fizera escrever ao “Jornal do Comércio” para omitir-lhe o nome da comitiva do imperador na visita à rainha Vitória em 1877. O pedido chegou tarde, pois o jornal publicara a lista do “Times”. Queixou-se então ao Barão de Penedo, nosso representante em Londres: “Não gostei disso porque conheço a nossa gente e as bem afiadas línguas da rua do Ouvidor. Vão agora pensar por lá… que passo neste meu Liverpool uma vida de Lopes”…

Rio Branco sabia, como escreveu em outro momento, que “nada (é) mais ridículo e inconveniente do que andar um diplomata a apregoar vitórias”. É verdade que, na época, o comedimento e a discrição eram virtudes. Nem se sonhava que os marqueteiros instrumentariam no futuro a própria política externa, convertendo-a em carta do baralho eleitoral. Pode-se até com isso ganhar alguma vantagem no jogo interno, mas ao preço de reduzir a eficácia da diplomacia. A não ser que esta vise apenas ao efeito propagandístico sem se importar se desse modo alimenta resistências e má vontade. O cuidado do Barão era, ao contrário, de não despertar suscetibilidades. Quando conseguiu, por exemplo, que o secretário de Estado americano Elihu Root viesse à 3ª Conferência das Américas, no Rio de Janeiro, em 1906, primeira visita do gênero à América do Sul, insistiu para que ele visitasse também Montevidéu, Buenos Aires e Santiago. “Assim”, escreveu, “dissipará ciúmes e prevenções”. A idéia era sábia, mesmo se a razão que dava nos parece demasiado calculista: “O melhor meio de obter o concurso dos hispano-americanos é afagar-lhes o amor próprio e isso não fica mal a uma nação poderosa como a América”.

O exemplo de Rio Branco merece ser evocado na fase delicada que atravessam as relações com a Argentina. O momento se parece muito ao que ele próprio teve de enfrentar, cem anos atrás. Estanislau Zeballos, o adversário que vencera no arbitramento e com o qual mantinha intensa rivalidade pessoal, se tornara chanceler do presidente Roca. Zeballos desempenharia um papel parecido ao do atual chanceler argentino, cuja agressividade, tão contrastante com a construtiva atitude do ministro Celso Amorim, se encontra na raiz de quase todos os desencontros recentes.

A crise final surgiu quando Zeballos, em ação temerária, interceptou o famoso telegrama cifrado nº 9 entre o Rio de Janeiro e nossa missão em Santiago, publicando tradução errônea, que denunciaria suposta aliança militar sinistra sendo tramada pelo Brasil contra Buenos Aires. A fim de liqüidar a intriga, o Barão tomou decisão dramática: revelou, inutilizando-o, o código diplomático brasileiro, desmoralizando a versão falsa e provocando a queda do desastrado chanceler.

A relação argentino-brasileira sobreviveu a esse e a outros incidentes que se seguiram, até chegar aos atuais, que devem ser desmontados com a mesma combinação de equilíbrio e firmeza. Equilíbrio em reconhecer e corrigir nossas faltas. Uma delas, de difícil conserto, foi o erro de ter faltado à solidariedade com o povo vizinho e a uma de suas mais valorosas expressões, o ministro da Economia e nosso amigo Roberto Lavagna, na justa e vitoriosa luta para negociar saída realista do colapso da dívida. Outra é moderar o triunfalismo e a ridícula autoproclamação de liderança, que só podem ter efeitos contraproducentes. Nada disso impede, contudo, a defesa vigorosa de posições brasileiras objetivamente justificáveis no comércio bilateral, na Organização Mundial do Comércio, na busca de um lugar no Conselho de Segurança, nas iniciativas para consolidar a democracia, a solidariedade, o relacionamento de concórdia entre as nações sul-americanas.

Não há motivo algum para sermos apologéticos ou tímidos em cada um desses temas, desde que se evitem excessos propagandísticos e imprudências. Afinal, mesmo o cuidadoso Rio Branco não conseguiu impedir que a elevação a embaixadas das missões do Brasil em Washington e dos EUA no Rio, em janeiro de 1905, gesto na época de alto simbolismo e prestígio, suscitasse na Argentina desaprovação até de jornal amistoso como “La Nación”. A medida se justificava em si mesma e isso basta.

Quanto ao mais, o que nos cabe é sermos fiéis, no espírito e na letra, a esta outra herança do Barão: “…Se então pensarem alguns destes países latino-americanos em entregar-se à loucura das hegemonias ou ao delírio das grandezas pela prepotência – estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do direito e, como hoje pela sua cordura, desinteresse e amor da Justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/05/2005.