Ficou muito mais difícil para o Brasil obter o saldo comercial expressivo de que necessita para reduzir a dependência externa e voltar a crescer em ritmo satisfatório. A razão não se encontra apenas ou principalmente nas medidas americanas sobre o aço. O problema vem de que tais medidas confirmam, de modo contundente e inapelável, tendência já claramente delineada em outros fatos recentes: a de que nem o Executivo nem o Legislativo do nosso maior mercado mostram qualquer disposição de fazer concessões nas áreas em que somos competitivos e teríamos melhores possibilidades de expandir as exportações.
Já se suspeitava de que era esse o caso ao observar a resistência dos negociadores americanos em avançar nas discussões da Alca sobre agricultura ou antidumping. De uns meses para cá, todavia, o que não passava de presunção ou suspeita começou a amparar-se em fatos impossíveis de ignorar. O primeiro foi a aprovação, de início na Câmara dos Representantes, depois no Senado, de versões da lei agrícola que indicam a firme determinação de manter em nível elevado a proteção à agricultura, em detrimento do objetivo de eliminar subsídios domésticos ou de exportação nas negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio). A lei definitiva, ainda não votada, terá de se basear na harmonização dos textos divergentes das duas Casas do Congresso, mas as diferenças das versões (duração da lei, limites para pagamentos a agricultores a título individual) em nada alteram esse caráter fundamental. Ora, a política que vem de ser confirmada pelo Congresso ocasionou o aumento dos pagamentos do governo aos produtores rurais, entre 1996 e 2000, de US$ 7,273 bilhões por ano a US$ 22,981 bilhões, somando total acumulado de US$ 71,5 bilhões a diversos títulos. Se tomarmos somente os subsídios diretos à produção, o governo despendeu em 2000 quantia 3,7 vezes maior que em 1996 (US$ 19,7 bilhões, contra US$ 5,3 bilhões). O mais extraordinário é que a expansão ocorreu não obstante a obrigação da Rodada Uruguai de reduzir em 20% em seis anos o apoio doméstico aos agricultores.
Como se isso não bastasse, o projeto de autorização para as negociações comerciais aprovado pela Câmara exige sistema complicado e pormenorizado de consultas específicas a diversas comissões do Congresso para qualquer negociação relativa aos “produtos sensíveis”, para os quais os EUA consolidaram a menor redução tarifária possível na Rodada Uruguai _15% em seis anos. Nessa categoria de cerca de 297 produtos estão incluídos carnes, frutas e legumes, óleo de soja, açúcar, suco de laranja, pó de cacau, etanol, tabaco, preparações de café, em suma, todos os produtos de interesse prioritário do Brasil no mercado americano. Para que se tenha idéia do que isso representa, é suficiente lembrar algumas das tarifas cobradas sobre esses produtos: suco de laranja, cerca de 60%; óleo de soja, 19,1%; açúcar, tarifa extra-quota, 85%; tabaco, extra-quota, 350%! O sistema de consultas prévias minuciosas não proíbe, em tese, a negociação, alega o Executivo. É óbvio, contudo, que será necessário autêntico milagre do deus do comércio para vencer esse diabólico labirinto protecionista.
Restavam o aço e alguns outros raros produtos nos quais teimávamos em conservar alguma expectativa. As salvaguardas ora anunciadas para o aço pouparam-nos em certa medida nos semi-acabados, em que o Brasil foi contemplado com quota que lhe possibilitará talvez manter as exportações no nível atual, embora estejamos impedidos de crescer. O perigo é que venhamos a perder o mercado para países como o México, isentados dessa restrição. Já nos acabados planos (laminados, chapas grossas), medidas anteriores de antidumping e direitos compensatórios nos haviam efetivamente fechado o mercado. A essa barreira intransponível, vêm se somar agora salvaguardas escalonadas de 30% a 18% em três anos. É o golpe de misericórdia.
Para mal dos nossos pecados, boa parte dos produtos nos quais o Brasil goza de indiscutível competitividade faz parte do que se poderia chamar do “caroço duro do protecionismo”. Aço, calçados, produtos agrícolas, quase sempre do sul dos EUA, artigos de couro, constituem, com os têxteis e as confecções, o núcleo da resistência que sobreviveu galhardamente a todas as rodadas de liberalização. Fora desses setores limitados, não há como negar que o mercado americano é dos mais abertos do mundo, inclusive à importação de manufaturas, e apresenta propensão para importar muito superior à de Europa e Japão. Para a maioria dos produtos industriais, as tarifas americanas são geralmente baixas. O problema é que nossas vantagens naturais estão concentradas na área complicada. Nas outras, não dispomos de condições de preço e qualidade para competir com os asiáticos, por exemplo.
A teoria do livre comércio, que nossos parceiros afirmam professar, baseia-se justamente no aproveitamento das vantagens comparativas: nenhum país deve ser injustificadamente privado da possibilidade de exportar aquilo que produz com preço baixo e boa qualidade. O Brasil pode não ter hoje condições de competir com Cingapura na fabricação de chips ou com a China na de brinquedos. Poucos países no mundo, porém, dispõem de condições tão vantajosas como as nossas em aço (qualidade do minério, localização favorável das usinas) ou em suco de laranja. Quando se tratava de lutar contra a lei de informática, os EUA foram os líderes dos ataques e das ameaças, argumentando sempre com a teoria do livre comércio. No momento de invocar em nosso favor David Ricardo e sua teoria, os nossos neoliberais não tardarão a descobrir que, quando se trata de aço, açúcar ou suco de laranja, na prática, a teoria é outra.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/03/2002.