“Como um jogador de futebol, a morte engana”, observava Drummond em “Morte no Avião”. Não só a morte, poderiam queixar-se os argentinos, mas também a história. A Argentina que deu certo foi praticamente uma dádiva da história do último quarto do século 19, mas acabou enganada pela traiçoeira inconstância dessa mesma história.
País rico em terra fértil, mas pobre de capital e gente, a vantagem natural não lhe serviu de grande coisa a princípio. A oportunidade só surgiu a partir do momento em que o transporte marítimo mais rápido e barato e a invenção dos navios-frigoríficos permitiram atender à demanda de alimentos das grandes populações urbanas criadas pela Revolução Industrial. Entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial, a globalização vitoriana gerou, de forma dependente, o fastígio portenho da “época das vacas e do trigo”. A Europa tinha então apetite voraz pelas carnes, os cereais, as lãs da Argentina e fornecia-lhe, em troca, os créditos e investimentos ingleses para financiar ferrovias, portos, frigoríficos, bem como as massas de imigrantes que transbordavam da sua expansão demográfica. Era uma combinação imbatível: os côncavos das peças de um lado do Atlântico aninhando-se perfeitamente nos convexos do lado oposto.
Era nesses dias dourados que os estancieiros de renome, os “apellidos de calle” (“nomes de rua”), viajavam à Europa com a família e a criadagem, levando as próprias vacas para servir-lhes leite fresco no navio. Não se dignavam a baixar a terra na escala do Rio de Janeiro, não só por temor à febre amarela mas porque nada tinha a oferecer-lhes a cidade que recebia somente as migalhas dos cantores de ópera de passagem, a caminho ou de volta do Colón. Buenos Aires tornou-se a primeira urbe moderna do continente. De lá vinha o bom e o mau, inclusive os delinquentes foragidos que introduziram na gíria carioca o vocabulário do lunfardo: otário, bacana, pinta, lábia, bronca, todo o linguajar do “Cambalache”.
Também na Argentina foi que surgiu a primeira sociedade de massas da América Latina, a primeira grande nação de classe média, engrossada pelos imigrantes, “los venidos a más”, na desdenhosa expressão atribuída pelo humorista Landrú às oligarcas do Barrio Norte. Lá, Sarmiento criou o melhor sistema de educação básica do continente e ali teve início a reforma universitária que renovaria a cultura hispânica. Não surpreende que tudo isso tenha alimentado, no dizer de Beatriz Sarlo, a “diferença” cultural argentina, a superioridade de um modelo identitário que se apoiava no pleno emprego, na cidadania, na educação.
Nada parecia ameaçar esse mundo de “calma, ordem, luxo e volúpia”. Mas, debaixo do brilho da superfície, era apenas, parafraseando o poeta, a história que dispunha poltronas para o conforto da espera. Tudo começa a acabar com a guerra de 1914. Os europeus passam a buscar a segurança alimentar, justificativa (ou pretexto) do moderno protecionismo agrícola. O golpe final virá com as “preferências imperiais”, o acesso privilegiado concedido pela Grã-Bretanha aos produtos dos seus “Dominions”, concorrentes dos argentinos. De nada valerá que o filho do presidente Roca e signatário do desastroso acordo Roca-Runciman tenha dito, num brinde improvisado e insensato em Londres, que a Argentina se orgulhava de ser, na prática, o “quinto Domínio de Sua Majestade”! A globalização vitoriana tinha chegado ao fim e começava a dolorosa e interminável agonia da economia argentina.
Com indignação e nojo, assisto na TV ao desfilar de abutres do mercado financeiro, cada um a reclamar sua libra adicional de carne fresca. Mais cortes orçamentários, mais “disciplina” fiscal, mais redução em salários e pensões. Não bastou que em 12 meses o número de pobres aumentasse em 3 milhões. Ou que o desemprego chegasse a 20% e a miséria, a mais de um terço da população. O cúmulo do simplismo foi o comentário do correspondente da BBC: “Tudo não passa da consequência de dez anos de corrupção e gastança”!
Nem uma palavra sobre como os ocidentais, com seus subsídios e barreiras, expulsaram a Argentina do comércio mundial. A globalização de hoje deixou de fora a agropecuária, justamente o setor onde se concentram as vantagens comparativas argentinas. Ao contrário da vitoriana, a versão atual não liberalizou a agricultura nem a imigração e muito menos a tecnologia. E ainda há quem pense que globalização e liberalização sejam sinônimos, quando a verdade é que a primeira só se serve da segunda seletivamente, excluindo-a sempre que convenha a seus interesses, como se acaba de ver com o “fast track” nos Estados Unidos. A história, ou melhor, os que têm o poder de manipulá-la atraiçoaram a Argentina, pregaram-lhe uma peça cruel, expelindo-a da divisão internacional do trabalho de que havia sido uma das principais beneficiárias e obrigando-a a endividar-se por não poder exportar os produtos em que é competitiva.
Raul Prebisch, diretor do Banco Central argentino na depressão dos anos 30, compreendeu o que, na mesma época, Caio Prado Jr. percebia no Brasil. Não é a falta de integração ao comércio e à economia mundiais que está na raiz do problema latino-americano. É o inverso: o excesso de integração perversa a uma globalização injusta é que perpetua o subdesenvolvimento e as crises. O que conta é a qualidade, não a quantidade de inserção do tipo precário de que abusou a Argentina. Se não mudar a forma e a qualidade da inserção, se a globalização não se tornar mais equilibrada, de nada adiantará estrangular ainda mais o orçamento, jogar alguns milhões a mais na miséria e no desemprego, dolarizar ou desvalorizar. Continuaremos a ver na televisão outras explosões de dor e de desespero em rostos que me recordam os de Mari e Tita, duas irmãs de Catamarca que velavam pelas minhas filhas pequenas na Buenos Aires dos anos 60. Espero que a vida e os sobressaltos da história do seu país não as tenham maltratado muito, pois simbolizam, na dignidade e na doçura, o melhor desse povo sofrido, gente como a gente, que abraçamos comovidamente nesta hora de tragédia que é deles mas também nossa.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/12/2001.