Domingo passado, tirei uma lasquinha do “Fogo Cruzado”, programa de Paulo Henrique Amorim. Enquanto esperava a vez de dizer alguma coisa sobre a crise financeira, assistia à parte principal do programa, dedicada a dois expoentes do rap, um de São Paulo e outro de Brasília. A discussão girava em torno da rejeição do rap pelas classes médias, que censuravam sua agressividade, sua insolente maneira de jogar na cara da seriedade o racismo e a injustiça, os quais preferiríamos varrer para baixo do tapete.
Os dois rapazes se defenderam galhardamente. Uma hora, alguém de Brasília criticou a excessiva agressividade das letras. O rapper de lá retrucou imediatamente: “‘É isso mesmo, agressividade, não violência”. Indagado sobre qual seria a diferença, explicou mais ou menos assim: “Violência é o desemprego, a miséria, a fome, o massacre de Carandiru e de Vigário Geral. Agressividade é denunciar isso tudo”.
Mais uma vez fiquei impressionado com a extrema dificuldade que têm as pessoas em admitir o óbvio: o evidente e clamoroso pecado social e racial da sociedade brasileira. Lembrei o que diz Skidmore: nós, os brasileiros, talvez por reconhecermos que os Estados Unidos nos superam em tudo ou quase, nos agarramos com unhas e dentes a nossa suposta superioridade moral, a falta de racismo. Ou, como dizia Florestan Fernandes, “o brasileiro é o sujeito que tem o preconceito de não ter preconceito”.
Horas depois, participei na Unicamp de seminário sobre os problemas financeiros. A sofisticação das exposições, a atenção e o interesse da enorme audiência me transportaram para outro planeta, culto e civilizado. Ao final, comentei que a demonstração mais categórica da concentração de renda e oportunidade no Brasil se achava mesmo ali, debaixo de nossos narizes.
Em país no qual pelo menos 60% ou mais da população é mestiça e cor-de-chocolate, era quase impossível distinguir entre a multidão de estudantes uma ou duas faces mais escuras. Disseram-me depois que as poucas que vi na universidade eram provavelmente de bolsistas cubanos.
Diante disso, perguntei aos presentes até que ponto a crise mundial que nos preocupava tanto faria alguma diferença para quem vive na periferia ou na favela, que fornecem a matéria prema do rap e seus intérpretes. Até que ponto o nosso debate sobre a crise não seria um exemplo a mais de como vivemos, lado a lado, em mundos que se tocam, mas não se conhecem e não se comunicam?
No fundo, o rap e os grafites são tentativas desesperadas de romper o isolamento e de estabelecer pontes, grito de socorro, não com súplica, mas com palavrões. Os autores de rap (do inglês “ritmo e poesia”) tornaram-se porta-vozes autênticos das comunidades de periferia, cujos problemas são ignorados por todos; inclusive pelas lideranças e os partidos de esquerda.
Como as estruturas de poder não tomam delas conhecimento, só lhes resta, além da evasão das seitas e das drogas, reclamar atenção com rajadas de metralhadora, facadas no estômago ou com palavras e garatujas.
O grafiteiro agride os símbolos urbanos da civilização material com spray e tinta. Emporcalha os prédios públicos e privados, enxovalha a fachada recém-pintada da igreja e o muro do cemitério, satiriza e faz a caricatura do monumento, cobrindo-o de hieróglifos cabalísticos que lhe imprimem um sentido de escárnio. É a mofa do sórdido em relação ao limpo, o triunfo do sujo e do lixo contra o “luxo, a ordem, a calma e a volúpia” dos jovens executivos enriquecidos no mercado financeiro. O rapper faz isso de maneira mais explícita e discursiva, com palavras e rimas às vezes pobres, mas sempre brutais e contundentes.
São ambas expressões do universo urbano monstruoso gerado nos guetos e periferias cancerígenos das megalógicas cidades dos EUA, da França, do Brasil, o estilo feroz e implacável de uma sociedade sem compaixão nem reverência. Mas são também linguagem nova, discurso original, arte que busca causar não prazer, alegria, devaneio, mas náusea e vômito, irritação e cólera.
Não são mais os compositores de classe média, Noel ou Orestes Barbosa, cantando a poesia da vida do morro, o chão de estrelas, o barracão de zinco, o “privilégio” dos que moram “pertinho do céu”. Tampouco são os homens do povo, criadores geniais como Cartola ou Nelson Cavaquinho, cuja tragédia individual se sublima sob a forma de lirismo tradicional, os temas do amor-paixão, a traição, o desengano. Nem há semelhança com a canção de protesto dos anos 60 e 70, o “Carcará que pega, mata e come”, a disparada, o tom heróico da retórica que comovia a juventude de classe média.
Agora já não se trata de “cobrir a nudez da verdade com o manto diáfano da fantasias”, mas de apresentá-la como cadáver putrefato e fedorento na mesa de autópsia do necrotério. Não mais a saudação da alvorada em Mangueira, a ave-maria no morro, mas a vida tal com ela é ou pode ser, fria, dura e atroz.
A temática não é a conquista da porta-estandarte, a escola de samba na avenida, um carnaval que só existe na imaginação do compositor, mas o crack, o tédio e o medo da prisão, a morte brutal nas mãos da polícia; o marginal que, baleado, narra na sua prolongada agonia a diversidade dos cenários do crime e que termina sempre com a morte violenta antes dos 30.
Para quem quiser conhecer algo verdadeiramente novo na arte do povo, aconselho escutar a segunda faixa do CD que já vendeu 500 mil cópias do grupo que se intitula, com maravilhosa intuição, Racionais.
Chesterton dizia que louco é quem perdeu tudo, menos a razão. As pessoas às quais os Racionais emprestam a voz também perderam tudo ou talvez nunca tivessem tido nada, a não ser a razão de existir, de exigir de nós os meios de ser gente como nós. Nada mais racional.
Essa gente nunca usou ou usará “black tie”. Para eles, a queda do índice Bovespa ou Dow Jones, o colapso do rublo, a evasão de divisas não poderão agravar-lhes os sofrimentos, pois já estão na pior.
Ou será que o mundo e o Brasil podem ficar mais inóspitos? Como ligar o nosso destino ao deles, como fazer de dois itinerários um só, de dois povos, duas culturas, uma só pátria? Essa é a questão que nos interpela na véspera de mais um Sete de Setembro.
Pois, em última análise, se ainda não conseguimos reduzir a dependência excessiva do exterior, superar o estrangulamento que nos impede de crescer, completar a obra iniciada com a estabilização, é porque fracassamos em demonstrar convincentemente como, de que maneira o que falta fazer irá mudar para melhor a vida da multidão de pobres, dar-lhes emprego, escolas, médico, casa decente.
Ou fazemos isso logo ou corremos o risco de descobrir um dia que se realizou o terrível vaticínio dos Tupamaros. “Se não houver pátria para todos, não haverá pátria para ninguém.”
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/09/1998.