Exportar queijo de camelo à Alemanha é o sonho de uma mulher da Mauritânia. Ela encontrou importador disposto a comprar toda a sua produção, mas há um obstáculo: apesar do baixo colesterol, a União Européia não previu regulamentação para o queijo de camelo!
O assunto veio à tona na conferência da ONU sobre os países mais pobres do mundo que acabamos de realizar em Bruxelas. Numa sala ao lado, um ex-ministro das Finanças do Mali conta sua história pessoal. Ele vivia na França com excelente emprego de engenheiro de sistema de informações, mas sentia-se agredido diariamente, ao ler nos jornais as histórias de discriminação e racismo contra os imigrantes africanos, ilegais ou não. Um dia não aguentou mais e, com a mulher e os filhos, voltou a seu país, sem emprego, mas seguro de ser bem acolhido.
No dia seguinte, discutimos as oportunidades na indústria musical. Nas nações pobres, 70% da população tem menos de 25 anos e é cada vez mais urbanizada. A música é a linguagem universal para todos os jovens perdidos na solidão e violência das cidades modernas. O talento aqui não tem fronteiras. Basta pensar no sucesso internacional de Cesaria Evora, do árido Cabo Verde.
O problema é que as transnacionais do disco ficam com a parte do leão dos lucros, e pouco sobra para os países de origem. Como fazer para proteger melhor os direitos autorais de compositores ignorados, quase anônimos? Como viabilizar pequenas editoras de disco em Dacar ou Bamaco? Não sorria, pensando que se trata de pouca coisa. A indústria da música representa faturamento de US$ 50 bilhões por ano, enquanto o café não passa agora de US$ 9 bilhões!
Esses exemplos são amostra do que tentamos fazer na conferência: buscar soluções práticas para as dificuldades de homens e mulheres humildes, dando-lhes voz para expor suas queixas. Sabíamos que não havia ambiente para avanços revolucionários nos grandes temas: perdão da dívida, a ajuda dos países ricos aos mais pobres, a abertura dos mercados para esses últimos. O impasse não provém tanto de divergências intelectuais ou ideológicas, embora haja um resíduo desse tipo. A questão é mais de vontade política, uma vez que as soluções definitivas exigem ou muito dinheiro (o perdão da dívida ao FMI e Banco Mundial necessita de bilhões para compensar essas organizações) ou enfrentar vociferantes lobbies protecionistas.
O que fazer diante da pedra que fecha o caminho? Só há três possibilidades. A primeira é a correlação de forças mais desfavorável que então. A segunda é dar de ombros e resignar-se passivamente à “desordem estabelecida”. Essa é, infelizmente, a atitude que até os bem-intencionados vêm adotando em relação ao encolhimento da ajuda dos ricos, embora esses nunca tivessem estado tão prósperos. O derrotismo lembra os versos de Yeats em “The Second Coming”:
“The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity”, ou
“Os melhores não têm nenhuma convicção, enquanto os piores
Estão animados de apaixonada intensidade”.
A terceira via é tentar um método inovador. Se não há consenso e falta vontade política, é preciso construir a confiança mútua e mobilizar as energias. Como? Por meio da atração de atores novos e decisivos, bem como do enfoque não em princípios gerais, abstratos, mas nas questões que afetam a vida diária das pessoas.
Tome-se o caso dos investimentos. É um escândalo que Cingapura ou Hong Kong recebam mais investimentos que os 49 países mais pobres. Junto do Banco Mundial e da Unido, a Unctad, órgão da ONU sobre comércio e investimentos, está buscando ajudar, publicando guias sobre investimentos nesses países, aconselhando-os na adoção de políticas de atração, na criação de agências de fomento. Mas, embora isso tudo seja útil, no fundo o que conta é a decisão dos investidores, não o desejo dos burocratas. Trouxemos, assim, os executivos de algumas das maiores transnacionais, criamos oportunidades para que eles discutam com ministros e presidentes o que se pode fazer para melhorar a situação.
Ao lado dos grandes, promovemos a vinda dos pequenos e médios empresários, de mulheres e jovens empenhados em abrir caminho próprio. Examinou-se como combater a Aids, gerar emprego, estimular exportações, proteger direitos humanos, pôr fim aos conflitos, sempre em torno de idéias concretas e práticas. Foi tal a diversidade dos temas que num dos dias da conferência participei de seis sessões diferentes sobre saúde, migrações, cooperação entre cidades, exportações de pequenas empresas, educação e ambiente! O importante não é a diversidade em si mesma; é não deixar de fora nenhum elemento essencial para completar as condições do êxito e, em cada caso, concentrar-se no que é factível e realista.
Por exemplo, tentar convencer americanos e alemães de que eles devem gastar 0,7% do PIB em ajuda aos pobres será possivelmente tarefa abstrata e ingrata. Quem sabe, porém, se não teríamos melhor chance de persuadi-los de que algo concreto, a Bolsa-Escola, pode permitir aos africanos retirar as crianças do trabalho escravo, dar de comer às famílias e romper pela educação a armadilha de miséria? Os governos só vencerão a inércia se a mobilização da sociedade forçar o movimento.
O que falta para resolver a pobreza do mundo é imenso, maior do que a mais alta das montanhas. Só a afastaremos do caminho se conseguirmos mobilizar e liberar o potencial de fé e energia contido em bilhões de humildes sementes de mostarda.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 27/05/2001.