Minha primeira lembrança da Biblioteca Municipal é o velório de Monteiro Lobato, segunda feira, 5 de julho de 1948. De lá partimos na gelada tarde dos invernos paulistas de antigamente. Com 11 anos, segui a multidão até o cemitério da Consolação.
Foi um dos mais impressionantes enterros da história de São Paulo, após o de Luís Gama em 1882.
Logo me tornei assíduo na biblioteca circulante, do lado da São Luís, e na central, a Mário de Andrade. Os velhos funcionários sabiam distinguir entre nós, fiéis de todas as horas, e os eventuais, que só apareciam nos exames. Escorregavam-nos fichas às escondidas da fila e guardavam-nos o lugar nas pausas do lanche.
Eu fazia parte dos que só saíam enxotados. Meia-noite era o limite teórico, mas a pressão psicológica começava uma hora antes. As luzes dos fundos se apagavam e tínhamos de transferir tudo para a sala principal. Em seguida, recolhiam os livros que não estavam sendo usados, batucava-se na mesa de controle, as luzes piscavam. Cabisbaixos, abandonávamos a contragosto o aconchego e sortilégio da leitura transfigurando a noite para enfrentar a escuridão banal das ruas do centro velho.
Em torno da Estátua da Sabedoria formava-se a rodinha dos habituais, os “adoradores da deusa”. Um comecinho de fama aureolava alguns: Ruth Escobar, Flávio Rangel, Maurício Tragtenberg, Bento Prado. Tímido, arredio, eu queimava pestanas nas noites da Mário de Andrade, até que, em 1958, fui aprovado no exame do Itamaraty e deixei a biblioteca.
O lar, dizia Eliot, é o lugar de onde se parte. Voltei, 50 anos depois, para um depoimento sobre aquela época. Fechado para restauro, o edifício de Jacques Pilon envelheceu bem, na nobreza dos latões e mármores, madeiras e couros, na preguiçosa luz da sala semicircular de periódicos, envolvida pela verdura dos jardins.
Foi lá que para sempre adquiri o vício da biblioteca pública. Perdoe-me o querido Mindlin: mais que o bibliófilo e o colecionador, o freguês de biblioteca é o menos possessivo dos leitores. Sabe que não possuímos os livros; são eles que nos possuem. Não rabisca nas margens (em geral); espera humilde pela devolução da obra.
Auto-educação e biblioteca pública são inseparáveis. Não foi à toa que Benjamin Franklin fundou um grupo de aperfeiçoamento mútuo e, a partir dele, a primeira biblioteca por subscrição em 1731. Passaram-se mais de 217 anos da morte de Franklin, mas a Biblioteca de Filadélfia ainda continua custeada pelos assinantes.
Aqui, as instituições se enterram com os homens que as criaram. Emporcalhou-se o prédio, não se compraram mais livros e revistas, não se modernizaram os serviços. A biblioteca renasce agora com Luís Francisco Carvalho, avis rara que trocou a advocacia de sucesso por ingrato múnus público.
Temos de ajudá-lo, nós que devemos à Mário de Andrade boa parte do que somos. A cidade tem um símbolo de onde saímos: a Hospedaria dos Imigrantes. Qual deve ser o símbolo do que, parafraseando Antonio Cândido, pode-se chamar a “história dos brasileiros de São Paulo no desejo de construir uma cultura?”.
Alguns têm a British Library, a Library of Congress, a Bibliothèque Nationale. Se nosso ideal é uma sociedade onde todos tenham acesso aos bens do espírito, que melhor símbolo do que uma biblioteca de excelência dedicada à história e à cultura de São Paulo?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/10/2007.