Quase 20 anos depois do seu começo, o trauma da crise da dívida continua a deprimir a autoconfiança dos latino-americanos. No momento em que o arco da crise começava a exacerbar os problemas políticos e econômicos desde a Argentina até a Colômbia e a Venezuela, uma pesquisa de âmbito continental em 14 países indicava que 61% dos consultados acreditavam que seus pais haviam tido vida melhor do que eles e menos da metade (46%) esperava que as condições melhorariam para seus filhos. Em casos surpreendentes, como o do México, essa última categoria baixava a 30%, o que talvez ajude a explicar a compulsão de emigrar aos Estados Unidos. É digno de atenção também que a consulta limitou-se às classes médias, cujo pessimismo, perigoso para a estabilidade dos regimes, revelou-se mais fundo do que o das camadas pobres.
No Brasil, 64% afirmavam que a vida dos pais fora melhor, mas 58% confiavam em futuro superior para os descendentes. A pesquisa “Mirror on the Americas” foi realizada em 1999, mas, como a situação só piorou desde então, é pouco provável que a percepção tenha mudado para melhor. Em abril passado, a revista da Cepal publicou análise dos resultados, financiada pelo Banco Mundial e de autoria do professor da Harvard Dani Rodrick, um dos mais originais e interessantes economistas contemporâneos e dos poucos a resistir ao convencionalismo dominante.
Sob o título de “Por que há tanta insegurança econômica na América Latina?”, Rodrick identifica três conjuntos de fatores responsáveis pelo nível “desconcertante” de insegurança, apesar de se ter deixado para trás a “década perdida”. Concentrarei hoje os comentários no primeiro desses fatores, a herança do trauma dos 80. O analista a compara à Grande Depressão, que provocou nos EUA colapso de 35% na renda entre 1929 e 1933, com desemprego máximo de 25%, índices bem mais devastadores do que os latino-americanos a partir de 1982 (só no Peru houve queda de renda comparável). Em compensação, a recuperação do nível de renda per capita de antes da crise demorou 10 anos nos EUA, contra 12 na Argentina, 13 no Brasil, não tendo sido atingido no México, Peru e Venezuela até 1997, o último ano com estimativas disponíveis na data do estudo. Além disso, a guerra ajudou a economia americana a expandir-se muito mais velozmente nos anos 40 que antes da crise, nos anos 20, ao passo que o crescimento latino-americano nos 90 foi muito inferior ao dos 60 e 70. Como se vê, há alguma base real para a lembrança coletiva de que a época dos pais foi melhor que a dos filhos.
A resposta de Roosevelt à Depressão foi ampliar o papel do governo na economia, reforçar a previdência social, os sindicatos, a ajuda contra o desemprego, as obras públicas. Na América Latina, foi o contrário: a crise obrigou o Estado a retirar-se da economia, a enfraquecer a seguridade social, a cortar maciçamente as despesas sociais. No terreno ideológico, o contraste é idêntico. O colapso de Wall Street acabou de converter os economistas e a elite norte-americana, que passaram do “laissez-faire” ao intervencionismo. Entre nós, a crise teve impacto oposto: a falência das estatais, do modelo de substituição das importações, a gestão econômica populista. A corrupção, a inflação crônica, os déficits transformaram os intelectuais e a opinião púbica latino-americana em partidários do mercado e críticos da intervenção governamental.
Em ambos os casos, a mudança das idéias acompanha a evolução objetiva dos problemas. Só que os feitos na vida das pessoas foram muito diferentes. O New Deal permitiu conciliar dois objetivos igualmente desejáveis: estimular a demanda deprimida por meio do gasto público e aumentar o sentimento de segurança dos indivíduos. Não é à toa que a canção-símbolo da época tenha sido “Happy days are here again” (“Os dias felizes voltaram”).
Na parte ibérica da América, as políticas de mercado não se mostraram em geral capazes de promover até agora o crescimento mais rápido da economia, ao mesmo tempo em que acentuaram a insegurança pessoal. A reestruturação econômica por meio da privatização, da desregulamentação e da abertura comercial acarreta, ao menos no primeiro momento, a destruição de empregos, o agravamento da precariedade dos contratos trabalhistas e da previdência, o crescimento da informalidade e do trabalho “desprotegido” (os “sem-carteira” no Brasil, por exemplo). O contraste com a experiência americana não poderia ser maior. Nos Estados Unidos, a coincidência de expansão econômica acelerada com a multiplicação dos programas sociais que esse crescimento possibilitava gerou um círculo virtuoso, no qual os dois elementos reforçavam o bem-estar e a segurança das pessoas. Na América Latina, tivemos o pior de dois mundos, um círculo vicioso em que o crescimento anêmico agrava o desemprego e a precariedade do trabalho, contribuindo todos esses fatores para alimentar a insegurança econômica e o medo do futuro.
O autor não discute se as políticas de mercado e de desestatização eram inevitáveis, nem nega que, na exceção mais notável, a do Chile, elas tenham produzido bons resultados. Apenas retrata com câmara objetiva a causa da impressão subjetiva de que o passado foi melhor que o presente e provavelmente o futuro não será mais ameno.
A ânsia de um mínimo de segurança é necessidade profunda e irredutível dos seres humanos, desde o nascimento e a primeira infância. Subestimá-la foi o erro dos populistas em relação à inflação, como tem sido o do Consenso de Washington, ao omitir completamente de sua agenda políticas para combater a insegurança econômica. Não admira, assim, que a perda da fé na reestruturação coincida com o aumento do pessimismo e da insegurança, sobretudo quando esses fatores são reforçados pela exasperação diante da volatilidade dos capitais, da frequência das crises financeiras e da incapacidade de regeneração dos sistemas políticos.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15/07/2001.