Já não lembro quem disse que, na América Latina, a política ameaça a cada momento degenerar em tragédia. O comentário não se referia obviamente à qualidade do debate público, que mais se parece à farsa ou às chanchadas da Atlântida do que às peças de Sófocles.

A referência era ao perigo pessoal maior incorrido pelos latino-americanos engajados em política, frequentemente exilados, torturados ou mortos como consequência das convulsões que nos caracterizam.

Para constatar que o perigo continua atual, basta ler a última e impressionante novela-reportagem de Gabriel García Márquez, ”Notícia de Um Sequestro”, ou acompanhar as investigações dos assassinatos políticos no México.

Mas, se a política segue ameaçada pela tragédia, o que dizer da economia, cuja sina aparentemente insuperável é a do náufrago sempre a ponto de morrer a duas braçadas de uma praia jamais atingível?

É o sentimento que me dá a leitura de coletânea organizada em Londres por Victor Bulmer-Thomas sobre o tema ”O Novo Modelo Econômico na América Latina e seu impacto na distribuição da renda e na pobreza”.

O título define o debate pelo essencial. O novo modelo, em substituição ao que recebeu o golpe mortal da crise da dívida de 82, foi adotado sobretudo para superar a crise do balanço de pagamentos e gerar excedentes a fim de pagar os bancos credores. Sua razão última de ser era, porém, a promessa de um crescimento mais estável e acelerado do que o anterior, com vistas a tornar possíveis a eliminação da pobreza e a redução da desigualdade. É justo, assim, que sejam esses os critérios para julgá-lo.

Partindo, portanto, da promessa de que uma economia aberta e dinamizada pelas exportações produz um desenvolvimento mais rápido do que o modelo voltado para dentro e de substituição de importações, são as seguintes as conclusões do estudo:

1ª) O maior desapontamento tem sido o impacto do novo modelo no crescimento. Embora as taxas de crescimento na primeira metade dos anos 90 tenham sido em geral mais altas do que na segunda parte dos 80, elas são ainda inferiores às alcançadas nas três décadas antes de 1980, com exceção da Argentina e do Chile. As projeções do FMI e outras organizações sugerem que a situação não vai melhorar no resto da década mesmo na base das presunções mais otimistas e sem levar em conta a desaceleração provocada pela crise mexicana.

2ª) Exceto novamente no Chile e no exemplo limitado do recente ajuste recessivo no México e na Argentina, o crescimento não tem sido impulsionado pelo aumento e a diversificação das exportações. De maneira geral, a América Latina não tem sabido aproveitar a expansão do comércio mundial e sua situação nesse setor continua a ser de retrocesso.

3ª) Desses fatos decorrem consequências sociais inevitáveis. Como a redução da pobreza é função do crescimento elevado durante períodos prolongados, as taxas decepcionantes dos anos recentes não tiveram mais do que efeitos negligenciáveis ou imperceptíveis sobre os níveis de pobreza.

4ª) Pior ainda é o panorama da distribuição da renda, que sofreu em geral deterioração, inclusive no setor rural do Chile. Entre nós nada houve de comparável ao ocorrido na Ásia, onde a melhoria dos salários reais e da distribuição da renda devem muito à rápida expansão da exportação, primeiro de produtos intensivos em mão-de-obra, em seguida de manufaturados de crescente teor tecnológico e valor agregado.

5ª) Inquietante é também o que vem acontecendo com o desemprego, em aumento em quase toda a região.

Esses resultados seriam para desesperar se não fossem duas notáveis qualificações. A primeira, conforme realça o livro, é que o novo modelo tem tido implementação parcial e incompleta, sendo muito raros os casos onde se logrou um verdadeiro equilíbrio orçamentário e um aumento da poupança doméstica. A segunda é de que o Chile, único exemplo da aplicação mais coerente e completa do modelo e por mais tempo (20 anos) é não por acaso, a brilhante exceção solitária, tanto em matéria de aceleração do crescimento e aumento e diversificação do comércio exterior como de melhoria dos índices sociais.

Diante disso, a solução não é o sonho da volta impossível a um passado que se revelou incapaz de reduzir a pobreza e a desigualdade. O caminho é perseverar na aplicação das políticas que deram certo no Chile e na Ásia, adaptando-as às especificidades de cada país e introduzindo as condições para maximizar seus benefícios sociais. Nenhuma fatalidade genética condena a América Latina à tragédia em política e ao fracasso em economia.

Os latino-americanos estão demonstrando capacidade muito superior à dos asiáticos em construir democracias vigorosas e culturas criativas. A fim de garantir a sobrevivência e a consolidação dessas conquistas, é preciso provarmos que não somos inferiores à Ásia quando se trata de completar a implantação de um modelo econômico aberto e dinâmico, assim como de uma política social que distribua de forma menos desigual os frutos dessa economia.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 01/02/97.