”Na curva perigosa dos 50 derrapei neste amor.” Se é perigosa a dos 50, imaginem a dos 60, idade de que já me vou despedindo. Pois bem, a curva dos 60 me fez derrapar num amor fulminante por Cuba e pelo povo cubano.

Os diplomatas, sobretudo os de mais de 30 anos de profissão e andanças pelo mundo, tornam-se em geral gente enjoada, ”blasé” como se diz na carreira. Já viram ou pensam que viram tudo. A curiosidade é como certas drogas: depois de algum tempo, é preciso aumentar a dose para surtir efeito.

Mas Cuba é dose! É como bebida forte, rum do Caribe, álcool de piratas, tabaco de terra gorda e rica. O ar é morno e molhado, o verde escorre líquido e escuro pelas folhas das plantas ”rigogliosas” (com o perdão do italianismo, é mais expressivo que ”viçosas”). O povo negro ou mestiço rebrilha na infinita variedade dos matizes de chocolate, do amargo e preto preferido dos franceses, ao suave chocolate com leite das vacas suíças. Mais que na Bahia, estamos na zona da mata de Pernambuco e Alagoas, menos Caetano Veloso e mais o Jorge de Lima de ”Essa Negra Fulô” ou ”Inverno”: ”Covas bem fundas pra enterrar cana; cana caiana e flor de Cuba!”

Fui a Cuba em novembro para representar o secretário-geral da ONU e minha própria instituição, o Unctad, na comemoração dos 50 anos da Conferência de Havana, que criou a Organização Internacional do Comércio, nunca ratificada pelo Congresso dos EUA. A viagem foi em si uma parábola da irracionalidade do nosso tempo. Parti de Washington e, em condições normais, o vôo tomaria pouco mais de uma hora. Devido ao bloqueio, precisei voar de Washington a Miami, desta a Cancún e, no fim de jornada exaustiva, do México a Cuba.

Tive a sorte de ser convidado a jantar pelo presidente Fidel Castro, com quem estive quase quatro horas. Rodeavam-no Carlos Lage, jovem e virtual primeiro-ministro da economia e todo seu estado-maior. Encontrei Fidel alerta e agudo aos 71 anos, informado e inteligentemente interessado em tudo o que vai pelo mundo. Provoquei-o várias vezes a falar sobre Cuba, mas ele preferia sempre discutir a crise financeira mundial, já então surpreendente no fôlego incansável. Interrogou-me também, com insistência, sobre os detalhes de como havíamos preparado e assegurado o êxito da introdução da nova moeda no Brasil.

O problema cubano lembra romances do século 19 como ”David Copperfield”, nos quais a morte súbita de um pai ou marido precipita de repente todas as desgraças. A desintegração da União Soviética e dos socialistas europeus privou Cuba brutalmente de 80% de seu comércio exterior, do petróleo barato, dos bens de capital e peças de reposição, dos subsídios que lhe permitiam vender por mais de US$ 3 a libra de açúcar cotada a 35 centavos no mercado mundial.

Sua situação é infinitamente mais grave do que a da China, que desde 1979 vinha construindo um novo modelo de sucesso crescente e dispõe de superioridades incomparáveis: território que é um continente, quase um mundo, mercado de 1 bilhão e 200 mil consumidores, poder militar respeitável. É por isso, entre outras razões, que, embora o regime de partido comunista único prevaleça em ambos, a política de ”engajamento construtivo” aplicada à China nunca se estendeu a Cuba.

Não que esta não haja tentado uma abertura similar aos financiamentos e investimentos estrangeiros. Seu êxito foi, contudo, muito mais limitado em razão da persistência e agravamento das tensões com os Estados Unidos que motivaram a recente legislação restritiva do Congresso norte-americano.
A melhor fórmula para superar sem traumas esse antagonismo ainda é a da ”finlandização” de Cuba, proposta, 30 anos atrás, pela clarividência de San Tiago Dantas. Partia de uma constatação óbvia: a Finlândia e Cuba são dois pequenos países colados ao dorso de dois mastodontes. Se foi possível à primeira manter um sistema capitalista e de democracia ocidental contrastante em tudo com o soviético no mais aceso da guerra fria, por que algo de similar seria inviável para a segunda? O preço pago pela tolerância de Stálin foi, no primeiro caso, o compromisso de guardar neutralidade nos confrontos da guerra fria, o que obrigou a Finlândia a abster-se dos benefícios do Plano Marshall. Agora que não mais existe guerra fria, nem pacto de Varsóvia e não se pode levar a sério que Cuba seja ameaça militar maior que a China, não se poderia caminhar para a normalização mediante uma versão modificada e mais fácil do que sugerida por San Tiago?

É um milagre a sobrevivência de Cuba ao cataclismo do fim do comunismo soviético e ao estrangulamento, sobretudo financeiro, que a força a tomar empréstimos a juros extorsivos até para financiar a safra açucareira e a proíbe de ingressar ao Banco Mundial, ao BID, ao FMI. Maior ainda é o milagre de haver preservado o essencial do que tem de melhor: um relativo igualitarismo, o acesso gratuito de todos à educação e à saúde, padrão não atingido nem pelos EUA, onde 30 milhões de pessoas não dispõem de qualquer seguro médico. Afinal, não é esse o progresso social que o Banco Mundial e o BID recomendam?

Reconhecer isso não exige abrir mão de nossa fidelidade à democracia ou à economia de mercado. Seria monstruoso ter de admitir que democracia e mercado são inseparáveis de desigualdade crescente, de insegurança de emprego, da espoliação do trabalhador e da degradação humana do turismo sexual, da lei da selva que condena à doença e ignorância os que não podem pagar. Tenho pena de ver que o Brasil, depois de San Tiago, parece ter desistido do esforço de ajudar na reconciliação de Cuba com o resto da América, da marcha em que nos encontremos a meio do caminho que compatibilize liberdade, justiça e menos desigualdade. Tenho pena, pois nenhum outro povo latino-americano é mais próximo de nós na comum herança do latifúndio e da escravidão, na mesma busca de uma alegria de viver adoçada pelo sabor da África. Falei em Havana na Casa de Fernando Ortiz, o estudioso da cubanidade e da cultura afro-cubana. Contei o que aprendi do meu querido mestre Pierre Verger, não sobre a semelhança, mas a identidade de candomblé e ”santeria”. Abracei babalaôs e ialorixás, ouvi os mesmos atabaques, senti o mundo de fraternidade que espera por nós no Caribe.

Que ninguém nos acuse de trair nossos valores. Pois o papa João Paulo 2º não vai acaso desembarcar em Havana, apesar de fragilizado pela idade, a doença e esse amor que não lhe permite poupar-se e faz dele o verdugo do seu próprio martírio? Quem ousaria acusá-lo de frouxo ou mole em relação ao comunismo?

Ouvi de Fidel palavras de admiração e respeito pelo pontífice, cuja chegada é saudada à entrada das igrejas por faixas que proclamam: ”Bem-aventurado aquele que vem em nome do Senhor”. João Paulo nos dá a lição, a mesma lição de amor evangélico ao outro que nos foi legada pelo herói de Cuba, José Martí, cujos versos aprendi de cor aos 16 anos:

”Al amigo sincero que me dá su mano franca,
Cultivo la rosa branca.
Pero al cruel que me arranca el corazón con que vivo,
Ni cardo ni ortiga cultivo:
Cultivo la rosa blanca.”

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/01/1998.