Bertrand Russell, cuja reputação começa a recuperar-se de longo crepúsculo, teria dito que o problema do mundo era os burros estarem cheios de certezas, enquanto os inteligentes se caracterizavam pelas dúvidas. Não há como discordar ao ver um especulador de excepcional êxito como George Soros pendurar as chuteiras e anunciar que os mercados se tornaram excessivamente voláteis para seu gosto. Ele não é o único a tomar essa decisão. Outras grandes figuras dos mercados financeiros decidiram se aposentar ou confessam não compreender mais o que vem acontecendo.

O século se inaugura sob o signo da instabilidade e da incerteza, como não se via talvez desde o período _evidentemente muito diferente_ de entreguerras. O fenômeno é geral, cobre todo o planeta sem exceção e não se confina ao domínio da economia, estendendo-se às questões político-estratégicas, de segurança, desarmamento e conflitos regionais. Após a ingênua euforia provocada pela queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, volta-se a tomar consciência da história.

Não é que estejamos, no momento, mergulhados em catástrofes ou desastres. Ao contrário. Encerrada a crise asiática, russa e brasileira, de um lado, “pacificados” Kosovo e Tchetchênia, do outro, gozamos de fase de calmaria e relativa prosperidade, salvo nas áreas de guerra civil e regressão econômica endêmicas da África, do Afeganistão, Líbano e Sri Lanka. Paira, contudo, sobre essa acalmia da “Pax Americana”, não a imensa majestade da “Pax Romana” do poeta Juvenal, mas a apreensão surda, a ansiedade perturbadora, a intuição inquietante de que ela não vai durar.

Por debaixo disso tudo, esconde-se a desconfiança de que somos carregados, sem rumo, pela impetuosa e inexplicável torrente da história e nos encontramos desprovidos de meios de controlar nosso destino. Já lembrei outras vezes o comentário de Emmanuel Levinas sobre o fim do sonho socialista. Dizia ele que tínhamos todos acordado mais pobres pois havíamos perdido a idéia de que a história tinha um sentido, de que era possível reparar as injustiças feitas aos fracos e edificar uma sociedade menos cruel e desigual, mais compassiva e solidária. Vagamos perplexos, como desamparadas personagens de novelas russas a perguntar a cada instante: “Que horas são?”. Ninguém mais sabe.

Por um curto momento, coincidente com a primeira metade dos anos 90, parecia haver um projeto capaz de imprimir direção às mudanças. Era quando Bush falava da “nova ordem internacional”, expressão que usou mais de 40 vezes. A coligação contra o Iraque foi sua aplicação prática, mas, desde então, o problema encruou, as crianças e os pobres iraquianos continuam a pagar interminavelmente seu exorbitante preço. Na Somália, a “nova ordem” foi por água abaixo e o país está sem governo até hoje. O que sobrou do conceito foi a expansão da Otan e sua intervenção em Kosovo pelas motivações humanitárias, que aparentemente não tiveram a mesma força mobilizadora no caso da Tchetchênia. Desde meados dos 90, primeiro em Ruanda, depois na Bósnia, hoje em Serra Leoa e no Congo, voltamos a doses diárias de horrores e impotência, senão indiferença. O sonho acabou.

Na economia, o panorama não é muito diverso. Mil novecentos e noventa e quatro marca talvez o apogeu do triunfalismo neoliberal e de uma globalização capaz de refazer as regras e o mundo. Naquele ano, a reunião de Marrakech conclui a Rodada Uruguai e cria a Organização Mundial do Comércio, a primeira instituição internacional de inspiração transnacional, isto é, como se não existissem fronteiras ou elas não fossem relevantes. Desde então, tropeçaram em obstáculos imprevistos os três projetos-chave essenciais à globalização final da economia:

1) o que tornaria obrigatória no FMI a plena convertibilidade da conta-capital, quer dizer, a total liberdade de circulação dos capitais;

2) o código mundial de investimentos proposto pela OCDE e que eliminaria o pouco que resta da capacidade dos governos para controlar os investimentos e as empresas transnacionais;

3) enfim, a extensão das fronteiras do sistema comercial para cobrir áreas até hoje de jurisdição dos Estados, tais como o meio ambiente, as questões trabalhistas, os investimentos, a competição e, quem sabe no futuro, os aspectos tributários.

Não foram, no entanto, esses percalços os que quebraram o ímpeto da avassaladora onda globalizadora, mas sim as crises financeiras que, a partir de 1995, puseram a nu a vulnerabilidade do sistema e sua propensão ao desastre: México, Argentina, Sudeste e Leste Asiático, Rússia, Brasil, por um triz os EUA por ocasião dos problemas do Long Term Capital Management Fund. A globalização descobriu sua mortalidade e nunca mais será a mesma.

É por isso que o fim do século 20 e o começo do 21 trazem a marca da vacilação, da instabilidade e da espera. Para ver, de início, o que se vai passar nos Estados Unidos, não só em relação à ameaça da inflação, o aumento dos juros, a explosão do déficit comercial e em conta corrente. A inquietação vem, sobretudo, da Bolsa de Valores enlouquecida, em que companhias virtuais que não produziram um alfinete nem venderam um dólar atingem cotações estratosféricas, um pouco, lembrava Galbraith, como os aventureiros do século 19 que fundavam companhias para dragar o mar Vermelho e recuperar o tesouro dos faraós ou da rainha de Sabá… O pior é que o desenfreado cassino é financiado não pela poupança privada, atualmente de menos 5% do PIB, mas pelo endividamento das famílias, que atingia em fevereiro, somente para tal fim, a soma astronômica de US$ 262 bilhões, 190% mais que em 1995!

Tão ou mais grave que a “irracional exuberância” dos mercados é a irracional flutuação das moedas das três grandes economias, o dólar, o iene e o euro. O problema era, em princípio, entre as duas primeiras, e os executivos japoneses se queixavam da impossibilidade de qualquer planejamento quando o valor relativo entre o dólar e o iene oscilava em 205 em menos de uma semana. A questão envolve agora o euro, mas é igualmente irracional. Quando Nixon abandonou o sistema de câmbio fixo de Bretton Woods, dizia-se que haveria uns poucos anos de turbulência até que o mercado reencontrasse o equilíbrio natural. Isso foi em 1971, quase 30 anos atrás… Cedo ou tarde, a combinação desses problemas afetará o dólar, a seguir as taxas de juros, os fluxos de capital e os que deles dependem cada vez mais como nós.

Razão assiste, portanto, aos que estão cheios de dúvidas e desconfiam das certezas arrogantes da Terceira Via, que acaba de sofrer a humilhação do repúdio dos eleitores ingleses. Enquanto não houver, em nível internacional, autêntica e efetiva ordem econômica e política, melhor é seguir o conselho do desventurado coronel Tamarindo, “avesso a bizarrear façanhas” e sucessor do desatinado e convicto coronel Moreira Cesar, ambos tombados em Canudos: “É tempo de murici; cada um cuide de si…”

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/05/2000.