Certa ocasião, passei uns dias na casa de praia de casal amigo cuja filha pequena, hoje excelente jornalista, esperneava por haver perdido várias partidas de baralho. Vendo sua inconformidade, a mãe lhe disse: “Minha filha, você tem que aprender a perder”. A resposta veio rápida: “Perder, estou cansada de saber. O que eu preciso é aprender a ganhar!”.

Domingo passado eu estava no Brasil e participei da tristeza e da mágoa de nosso povo. Lembrei-me de quando tinha 13 anos em 1950 e perdemos a Copa no Maracanã. Desta vez, o que mais doeu foi que não soubemos perder. Não no sentido de termos reagido com brutalidade ou chicana, o que felizmente não é da nossa índole. Mas por não termos jogado de forma razoável, se não com brilho, ao menos com bravura e brio. Em suma, perdemos mal.

Não é isso, contudo, o que desejo sugerir com o título. Aprender a perder é também saber tirar lições da derrota. O pior que nos poderia acontecer neste momento seria dar vazão ao tumulto de emoções em espetáculo desprimoroso de recriminações. E, nesse processo, perder de vista o essencial, que é tentar compreender, com serenidade e equilíbrio, não o insucesso em si, pois ele faz parte do jogo, mas a forma pela qual se produziu.

Sei que vou entrar em terreno perigoso, pois terei de cotejar minhas percepções com as de pelo menos 160 milhões de técnicos de futebol. Tenho a impressão, porém, de que há algo de podre no reino do nosso futebol de cartola e que o surpreendente não é termos perdido, mas sim termos sido capazes de ganhar quatro Copas com a (des)organização que aí está.

Tive duas experiências com o mundo oficial do futebol, ambas desastrosas. A primeira foi no verão americano de 92 ou 93, quando era embaixador nos EUA e a seleção veio participar de torneio disputado também pela equipe alemã. Sem recorrer à embaixada, os (ir)responsáveis da CBF despejaram os jogadores, em pleno calor tórrido de Washington, em espelunca suburbana sem ar condicionado, verdadeira proeza nos Estados Unidos, onde até os motéis de estação são refrigerados. Durante um dos jogos, ladrões depenaram os quartos dos jogadores, alguns do quais voltavam de seus times na Europa e levavam para as famílias dezenas de milhares de dólares, relógios de ouro Rolex e outras preciosidades. Graças ao advogado graciosamente mobilizado pela embaixada o hotel foi forçado a pagar relutantemente indenização quase simbólica. Ficamos assombrados com o amadorismo, não no sentido esportivo: o encarregado da administração trazia sacola cheia de dólares para pagar a hospedagem. Os dirigentes supremos, os mesmos de agora, ficaram naturalmente longe dos jogadores, em um dos melhores hotéis: Casa Grande e Senzala. É claro que perdemos, e feio.

Da outra vez, ministro da Fazenda quando da conquista da Copa em 94, tive de intervir devido à confusão armada na alfândega pelo retorno da delegação da CBF em avião atulhado de bagulhos, o que tampouco depõe em favor do senso de responsabilidade dos dirigentes.

Os jogadores me causaram impressão incomparavelmente melhor do que os diretores, parasitas do talento alheio. Retrato fiel de país cujo povo é muito superior à elite (?). E não me venham dizer que a culpa é do Estado, pois esse é setor privatizado por excelência, no qual o governo peca não por excesso, mas por falta de presença e orientação. Já dizia Camões que “o fraco rei faz fraca a forte gente”. Como os jogadores provaram ser fortes em outras ocasiões, é preciso identificar quem foi o rei futebolístico que contaminou a tropa.

Mas é igualmente necessário não cair no extremo oposto do derrotismo. Dizer, como ouvi, que não temos fibra nem raça, que estamos condenados a sempre morrer na praia, a fraquejar na hora da decisão. Nada disso é verdade, nem em relação ao futebol, que teve grandes momentos de sangue, suor e lágrimas, e menos ainda em termos de nossa gente modesta, cuja mera sobrevivência é um milagre da coragem de cada dia. O modernismo nos fez mal enorme ao criar o falso clichê do brasileiro herói sem caráter. Quando morreu Ayrton Senna, lembrei que era ele o verdadeiro retrato do Brasil que poderemos vir a ser: lutador, obstinado, perfeccionista em técnica de vanguarda, não apenas o talento natural, mas a glória conquistada a preço da dedicação total até o sacrifício da existência.

A derrota na vida dos indivíduos ou dos povos pode ser criativa se servir de ocasião à autocrítica, de catalisadora de energias para nos superarmos a nós mesmos. A história deste século é rosário interminável de fracassos seguidos de inesperados triunfos. As duas catástrofes que os alemães criaram para si próprios nas guerras mundiais e a do Japão na Segunda, dando lugar ao milagre econômico do pós-guerra; a humilhação da França com a ocupação e o colaboracionismo, na Indochina e na Argélia, preparando o terreno para o país estável e próspero de de Gaulle, Mitterrand e Jospin; o agudo momento de declínio americano no Vietnã e Watergate, em contraste com o apogeu político e econômico da única superpotência de nossos dias; a Espanha de Franco e da Guerra Civil, Portugal de Salazar e do ruinoso conflito colonial, desaguando na dinâmica participação de ambos na União Européia; a Argentina da guerra suja, das Malvinas, da hiperinflação de ontem, contra a economia saneada e em crescimento de hoje. Poupado de graves desastres militares, o Brasil não escapou de duas ditaduras que representam, somadas, quase um terço deste século, nem do trauma da morte de Tancredo e da humilhação do impeachment por corrupção. Cada vez que caímos, porém, fomos capazes de nos pôr de pé de novo. É o que temos agora de fazer, não só corrigindo o errado em nosso futebol. É preciso também superar o fracasso cotidiano da violação dos direitos humanos, reformando a Justiça e a polícia; do meio ambiente, promovendo esforço coletivo para proteger a Amazônia e o cerrado do destino da mata atlântica. E sobretudo é necessário atacar o problema prioritário da pobreza e desigualdade, da promoção dos negros e dos marginalizados, por meio da equalização das oportunidades de educação e saúde, da reforma agrária, de políticas afirmativas de criação de emprego, de acesso aos recursos, de redistribuição de renda.

Vi na TV hispânica de Nova York quando Taffarel declarava, após os pênaltis, estar contente por ter alegrado um povo que ultimamente tem tido poucas alegrias. Essa é a palavra-chave, alegria. Não foi à toa que Joaquim Pedro intitulou um de seus filmes imortais “Garrincha, Alegria do Povo”. Temos de ser gratos a Pelé e a Garrincha ontem e aos jogadores de hoje pela alegria que nos deram. Apesar do fim melancólico, valeu a pena. Domingo foi tempo de chorar. Amanhã será tempo de rir. Como dia e noite, verão e inverno, haverá sempre vitória e derrota, morte e ressurreição. Cabe-nos fazer o possível para que a vitória seja mais frequente e dure mais que a derrota. Que não haja ilusão contudo. O Apocalipse nos diz que só Deus enxugará um dia as lágrimas de nossos olhos. Enquanto não chega esse dia da alegria sem término na pátria definitiva, é bom reconhecer que nossas alegrias fugazes nos têm vindo quase sempre do futebol e da música. Em outras palavras, do povo, pois é só nessas áreas que o engenho e o talento natural de Djalma Santos e de Cartola, de Pelé e Pixinguinha, de Garrincha e Nelson Cavaquinho dispensam a educação formal que a pátria lhes negou como a milhões de outros. É por isso que não é no rosto dos ministros do governo, dos bispos da igreja, dos professores da universidade que vamos encontrar a verdadeira, a genuína face da nossa gente. A cara do Brasil é a da seleção, cara mestiça, negra, branca, cara de pobre, dos milhões de hispânicos como vi nos EUA, dos milhões de hindus e bengaleses, como vejo hoje em Déli, que se identificaram conosco na Copa. É nosso dever dar graças a nossa gente humilde, proporcionar-lhe condições para que, cada vez mais no futuro, ela possa continuar a trazer, a nós e ao mundo dos pobres, a alegria que tem a cara do povo brasileiro.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 18/07/1998.