“Me dê as flores em vida”, reclamava Nelson Cavaquinho, “o carinho, a mão amiga,/ para aliviar meus ais.” Com superior realismo e lógica impecável, o sambista não via razão de adiar para a posteridade o público reconhecimento dos méritos. “Por isso é que eu penso assim./ Se alguém quiser fazer por mim,/ que faça agora.”

Foi o que fez o ministro da Cultura, ao homenagear com medalha os 60 anos de excepcionais serviços do embaixador Wladimir do Amaral Murtinho. Acertou o ministro em dobro: na pessoa do homenageado e na rarefeita categoria a que pertence, a dos que dedicaram a vida a pôr o Estado a serviço da cultura.

Nestes tempos bicudos para os enxovalhados empregados do governo, como se dizia antigamente, fica bem ao ministro reconhecer que algo deve o país aos seus funcionários públicos. E que seu próprio ministério, volta e meia ameaçado, nasce e renasce das cinzas graças à longa linhagem de servidores, uns de carreira, outros episódicos, unidos a serviço dos brasileiros, como dizia Antonio Candido, “no seu desejo de ter uma cultura”.

Já que nos deixamos guiar por Antonio Candido, é apropriado lembrar, sem demérito dos pioneiros, que o verdadeiro fundador da moderna política pública da cultura no Brasil foi Mário de Andrade. É ele que encontramos na origem de bibliotecas e discotecas (no sentido antigo), do frustrado projeto de renovação do Departamento de Cultura de São Paulo, na idéia do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Com o apoio do ministro Capanema, de outro funcionário exemplar, o poeta Drummond, Rodrigo M.F. de Andrade daria realidade ao projeto, convertendo o SPHAN em espécie de ordem cisterciense da memória brasileira no rigor ascético e sem compromisso de sua luta contra interesses desfiguradores.

Os membros da confraria, funcionários, conselheiros, colaboradores, cultíssimos todos, eruditos, modestos e invariavelmente pobres, negando-se à volúpia de colecionar a fim de não criar ocasião próxima de pecado. Renato Soeiro, Luiz Saya, Godofredo Filho, o querido amigo Alcides da Rocha Miranda, outro não menos querido, mestre e amigo Clarival Valadares, seu irmão José, dom Clemente da Silva Nigra, Lygia Martins Costa, Augusto da Silva Teles, o saudoso Sílvio Vasconcelos, Airton Carvalho e, “last but not least”, Lúcio Costa. Sei que deixei muitos de fora, mas, que remédio, seria preciso encher de nomes páginas e páginas!

Quando ameaça abater-nos o espírito o desalento com a pátria, metida no gosto da cobiça, em apagada e vil tristeza, é bom lembrar que nosso povo nunca cessou de produzir gente dessa qualidade. Desânimo com o Brasil é, no entanto, sentimento que jamais penetrou a alma de Murtinho. Filho de diplomata, só veio a conhecer realmente sua terra como jovem de 20 anos. Desde então, não deixou de deslumbrar-se com o Brasil e seu povo.

Nos últimos 50 anos, não há muitas iniciativas de cultura brasileira, dentro ou fora do país, que não tragam sua impressão digital. Do pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Bruxelas de 1950 à organização das primeiras bienais; da promoção de conferências de Sérgio Buarque de Holanda na Europa ao apoio sistemático a artistas visuais, músicos, bolsistas, pesquisadores, cineastas; da direção do Instituto Nacional do Livro até o melhor das comemorações do 5º Centenário, a publicação em co-edição da série “Intérpretes do Brasil” e outras obras inencontráveis. Mas isso não passa de amostragem cheia de falhas. Faltaria mencionar o que fez para que Brasília, a arquitetura, a gravura se tornassem símbolos do Brasil no exterior, a construção de embaixadas, do cemitério de Pistoia, com Olavo Redig de Campos, colaborador inigualável, a viabilização do monumento de Monte Castello, de Mary Vieira. Sem esquecer o vastíssimo capítulo de Brasília, a direção da Secretaria de Educação, o edifício do Itamaraty, que, após Oscar Niemayer, deve-se mais a ele que a nenhum outro.

Ao encerrar a carreira diplomática, quis continuar no Ministério da Cultura, do qual havia assistido, por assim dizer, à gestação, ainda no tempo do Pró-Memória, com outro grande desaparecido, Aluísio Magalhães. Em terra onde não poucos se aposentam com algo mais de 40 ou 50 anos, percebe-se que, para ele, trabalhar e viver são uma e a mesma coisa, que seria quase capaz de pagar para continuar a servir. No mundo cultural onde pululam as vaidades e os egos, no qual muitos, até com talento ou gênio, servem-se da cultura e das artes como meio de promoção, não como o fim da criação, não se conhece dele uma só atitude, palavra ou intenção de natureza subalterna. Sei que esse retrato pode soar excessivo. Quem o conhece, diria, contudo, que o esboço peca não por exagero, mas por fraqueza em captar sua ilimitada e esclarecida confiança no potencial do Brasil e de seu povo, sua capacidade de sentir entusiasmo e de fazer partilhar aos demais a fé que sempre depositou no valor positivo do esforço humano.

Raissa Maritain deu a seu maravilhoso livro de memórias o título de “As Grandes Amizades”, para significar que somos, no fundo, o que de nós fizeram os grandes amigos. Para Marisa, para mim, para centenas, tenho a certeza de que a amizade de Tuni e Wladimir nos fez naquilo que temos de melhor, de que eles representam a nossos olhos a mais perfeita realização do ideal de Nietzsche, de fazer da própria vida uma obra de arte.

Não sei como foi a cerimônia da medalha. Conhecendo, porém, a generosidade e a grandeza do homenageado, fico daqui a imaginar que, após ouvir os agradecimentos do ministro, em nome do Brasil, por 60 curtos anos de serviço público, Wladimir respondeu com os versos que Drummond atribui a Mário de Andrade no poema da visita deste último a Alphonsus de Guimarães, em Mariana:

“Agradece: Mas sou eu que me rendo, cativo,
Porque me deixou dar-lhe esta hora de grande alegria.
Sua alegria ressoa em mim, bronze e órgão,
E me faz cantar: Vida, vida,
Vida apertada, vida comovida”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 07/01/2001.