Primeiro foi a série de Tarzan, sobretudo com Johnny Weissmuller, insuperável homem-macaco devido ao seu natural bronco, sem afetação. Depois vieram filmes como o que dá nome a esta coluna, ou “As Minas do Rei Salomão”, “African Queen”, cujos atores, segundo Katharine Hepburn, baixaram todos ao hospital por terem acreditado no conselho médico de que nos trópicos deve-se beber muita água. Exceto Humphrey Bogart e John Houston, que só tomaram álcool… Sim, houve tempo em que a África era moda em Hollywood. Os africanos, contudo, só compareciam como figurantes dos amores de Ava Gardner e Gregory Peck, carregadores assustadiços e supersticiosos ou traiçoeiros canibais de diabólica perversidade. Até “Out of Africa” (“Entre dois Amores”), apesar do livro de Karen Blixen, não escapou ao clichê.
Agora que o continente se vê dilacerado pela Aids, as guerras civis, o genocídio, a África só aparece regularmente nos canais sobre natureza e bichos, os homens de novo relegados ao pano de fundo. Pensei nessas coisas ao andar pela região do Kilimanjaro. Estive em Dar Es Salam, Dodoma, Arusha e segui até Ngorongoro. Quem puder não perca essa viagem. É a área de maior concentração de animais selvagens por quilômetro, os rebanhos de milhares de búfalos, zebras, antílopes, avestruzes que se vêem na TV na maioria das vezes foram filmados lá.
Mais para tirar o fôlego é a paisagem. Após umas quatro horas de estrada sacolejante, chega-se a 2.500 metros de altura, à borda de imenso círculo, de onde se contempla, lá em baixo, a gigantesca cratera de vulcão de 300 km ² de área. De repente a gente se dá conta de que já viu em algum lugar o anfiteatro de montanhas envoltas na névoa fina da manhã, as encostas cobertas de camadas superpostas de árvores como fatias de bolo, as majestosas acácias de topo achatado dominando as demais e formando uma espécie de teto, a cobrir a floresta. Já vimos aquilo e é verdade: como os cânions do Colorado dos “westerns”, o cenário faz parte do nosso inconsciente cinematográfico coletivo.
Se jamais existiu um paraíso terrestre, certamente foi esse o lugar; nem mesmo falta o muro alto da cratera a fechar por todos os lados o Jardim do Éden.
E de fato como a confirmar que o dedo de Deus passeia por essas paragens, aqui ao lado se encontra a garganta de Olduvai, onde Mary Leakey descobriu, imobilizadas para sempre a lava fóssil, as mais remotas pegadas de hominídeos, de 3,6 milhões de anos. Em diversos pontos da franja que se estende da Etiópia ao Quênia e à Tanzânia, ao longo do Rift Valley, sobrevivem os pedaços de ossos dos nossos vagos e nebulosos avós. Não muito longe foi descoberta a sepultura de Lucy, até segunda ordem a mãe africana de todos nós, ironicamente até dos racistas.
Em meio a esse esplendor e magia, só o homem é mísero, vítima de catástrofe e pragas, de miséria abjeta, pilhagens e escravização, no passado e no presente, das mãos de estrangeiros e das feras predadoras que lhes couberam como governantes, os Mobutus e Idi Amins que fizeram empalidecer de inveja os Trujillos e Batistas da América Latina. Depois do sacrifício ou da falência da primeira geração, de Lumumba a Nkrumah, a África começou a dar ao mundo alguns dos poucos estadistas que conseguiram enobrecer o poder, acima de todos Mandela e Nyerere. Ambos souberam resistir à tentação de dominar e deixaram a cena voluntariamente, ambos foram homens da reconciliação e do perdão, aliando brandura a integridade. São os inspiradores da renascença da África, da criação da União africana, do projeto unificado que poderá servir de base ao Plano Marshall para a África, caso os ricos o financiem como fizeram com o original.
Há algo de único na contribuição que os africanos poderão dar à humanização de uma sociedade global enlouquecida pela cobiça. Tome-se o exemplo dos Masai, esse povo altivo de guerreiros longilíneos e esbeltos, os homens vestidos com todos os padrões de vermelho vivo, do xadrez às listas e à cor sólida, vaidosos na maquiagem do rosto e nas jóias, as mulheres de profundo azul anil, brincos e colares de mil cores. São pastores, sempre com bastão, e crêem, na sua mitologia, em que todas as vacas do mundo lhes pertencem. Ao saberem que, devido à aftosa, doença para eles sem importância, os europeus massacravam e queimavam milhares de vacas, choravam de indignação, exclamando: “Por que não nos dão essas vacas, para que cuidemos delas?”. Você sorri de comiseração, sofisticado leitor? Mas o que teria sido dessa natureza incomparável, desses majestosos animais, se os Masai, donos da área, não os tivessem preservado: tendo carne e leite, jamais caçaram bichos por esporte ou para comer, pois a carne de caça é tabu. Quem é o civilizado, nós ou eles?
A reverência diante da vida é um dos valores a redescobrir em algumas culturas africanas. Outro é a alegria, qualidade tão rara depois que deixamos a primeira infância e a que os Salmos se referem ao pedir que “a alegria de Deus seja a nossa força”. Deve ter ficado evidente a essa altura que, igual a um dos mentores do pouco que sei de coisas africanas, Alberto da Costa e Silva (o segundo foi Pierre Verger), também peguei “O vício da África e outros vícios”, nome de uma bela coleção de pequenas obras-primas sobre temas africanos.
Vivi com Alberto e Mario Gibson Barboza, há quase 30 anos, o júbilo da visita à aldeia lacustre de Ganviê, que ele descreve em “Um domingo no reino de Dangomê”. Lembro-me, contudo, de outro episódio, a recepção popular a José Sarney em Cabo Verde. Após explosão de entusiasmo que durou horas, ao chegarmos à residência oficial, Sarney nos disse estas palavras, que deixo como conclusão apropriada do artigo: “Hoje compreendi finalmente de onde vem a alegria do povo brasileiro”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/08/2001.