As imagens se atropelam e embaralham quando desfio mentalmente o filme confuso deste mês de férias no Brasil. Escrevo no vôo que me conduz de volta a um mundo onde não se suspeita do que se passa aqui. Duas cenas se superpõem às demais e resumem 30 dias de sensações desencontradas. Da janela de um ônibus no Rio emerge a arma ameaçadora e o rosto contorcido, a cabeça estranha, enrolada em panos, da figura da morte, como se o lívido personagem de Bergman em “O Sétimo Selo” tivesse mudado de latitude e de cor. Fecho os olhos e, ao reabri-los, vejo-me cercado na Mostra do Redescobrimento por bandos de crianças orgulhosas de seus crachás, que 80 ônibus fretados pelos organizadores vão buscar cada manhã nas escolas públicas da periferia e dos bairros pobres.

Qual deles é o Brasil de verdade? Ou melhor, admitindo que ambos se engalfinham na realidade contraditória, qual acabará por destruir o outro e se converterá no único país que haveremos de ser?

Deixei São Paulo ainda jovem, há 41 anos, quando a cidade não tinha, creio, mais de 3 milhões de habitantes. O coração de tudo era o centro velho e a elegância morava na Barão de Itapetininga, na Confeitaria Vienense, onde os namorados bebericavam chá ao som arrepiado de violinos ciganos. Desde então, o centro já se deslocou várias vezes e o lugar abandonado se degrada em área de abjeta pobreza e criminosa sujeira. Cria-se riqueza de vitrina, mas a elegância moral, a de gostos e atitudes, é sufocada pelo agressivo “novo-riquismo” de edifícios de granito e vidro “ray-ban”, tudo descomunal, desmedido, emergindo da fuligem preta dos ônibus, estremecendo ao barulho estridente de um oceano de veículos: será já o mundo assustador de “Blade Runner”? Os leitores que me perdoem: vivo em Genebra, pouco mais de 300 mil habitantes, paisagem bucólica de picos nevados em horizonte de lago límpido.

Assusto-me, talvez, com a facilidade, mas não consigo crer que, do brutalismo urbanístico e arquitetônico, da crueza dos outdoors consumistas escarnecendo de 1,5 milhão de desempregados, brote um país com equilíbrio e senso de medida, em que se possa viver uma vida rica em plenitude _em que “ser” valha mais do que “ter”_ e que sinta compaixão dos infelizes e mostre solidariedade com os pobres.

Dizem que o país andaria perdido, sem projeto e sem rumo. Projeto, no entanto, existe sempre, ainda que implícito. O que está aí lembra o que disse o presidente Havel ao demitir o primeiro-ministro Klaus: ele teria confundido o país com a macroeconomia. Sei que a fórmula é excessiva, uma caricatura.

Afinal, faz-se um esforço sério em saúde, educação, assentamentos rurais. E nada há de errado em querer ter macroeconomia mais sólida que no passado, em consolidar a estabilidade. O problema começa quando todos os valores são subordinados a esse objetivo, não porque não haja outro caminho, talvez mais gradual, mas por não se ousar solução que recuse adiar a prioridade social para mais tarde. Muda o discurso; a prática, porém, é a mesma: esperar o bolo crescer, obedecer à sequência em que o humano e o social vêm depois da expectativa dos mercados e da tranquilidade dos rentistas. O que acaba por erodir a auto-sustentabilidade da política de estabilização, pois os conflitos sociais se agudizam, a coesão e a solidariedade são destroçadas, escorregando-se para a exacerbação de posições, em que a radicalização faz perder o senso das proporções e rejeitar o bom e o mau, certo com o errado.

Não é de surpreender que o imperialismo da macroeconomia e, mais do que o efeito dos governos, a grosseria da atmosfera social de consumismo, o embrutecimento de uma TV grotescamente felliniana correspondam à violência homicida e suicida dos marginalizados. Não encontrei praticamente ninguém que não tivesse para contar uma história de horror, de assalto, sequestro, massacres. É como se os contos de “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, tivessem se convertido no “script” banalizado do dia-a-dia. Os lunites empobrecedores da globalização liberal emergem então com nitidez. Se há uma função irredutível do Estado, mesmo para os liberais exaltados, é a de garantir a segurança, origem primeira do pacto social. Ora, a polícia de São Paulo, segundo me contam, mata 600 pessoas por ano. Quantas terá de matar ainda para deter o crime, 6.000, 60 mil? Mas como ter política eficaz de segurança quando há dez anos se destrói o espírito do serviço público e o moral dos seus funcionários?

Não obstante, o outro Brasil continua a dar mostras crescentes de vitalidade, não só no setor produtivo, mas no voluntariado que se multiplica e em iniciativas culturais de qualidade indiscutível, como o renascimento da Orquestra Sinfônica de São Paulo, sob a regência de Johnny Neschling, na antiga estação ferroviária da Sorocabana restaurada. Nada, nesse sentido, impressionou-me tanto como a Mostra do Redescobrimento, incomparável pela envergadura, a riqueza e o arrojo. Ao menos as exposições do gênero que conheci, as do Bicentenário da Independência dos EUA ou a do meio século da Descoberta da América, não chegam perto. Da insuspeitada beleza das peças arqueológicas à antecipação dos caminhos da arte contemporânea, na obra pioneira de Hélio Oiticica e Lygia Clark, a invenção do Brasil se encontra ali por inteiro. É o verdadeiro “Museu de Tudo”, de João Cabral. Mais que museu, todavia, é festa, exaltação, celebração do espírito e da “mão do povo brasileiro”, título da inesquecível exposição de Lina Bo Bardi. Justifica-se por isso a cenografia, criticável, talvez, em um outro aspecto, mas no essencial ajustada, ao que terminou por ser a autêntica celebração dos 500 anos, após o lamentável fiasco da quermesse oficial. Pois ela tem de sobra o que tanta falta fez à outra, reflexão crítica, alegria, a emoção que nasce do Brasil “negro de corpo e alma”, índio até a raiz, mestiço no vigor e na variedade da arte popular.

Quando se poderá ver de novo juntas a negra beleza pura das esculturas de Aguinaldo, a aspereza dramática de “Memória do Cangaço”, de Paulo Gil Soares, a recriação do mundo como oferta a Deus nos intrincados bordados do marinheiro Antonio Bispo do Rosário, que chamamos de louco, embora a ordem de sua visão interior nos recorde de que “louco é aquele que tudo perdeu, exceto a razão”, no paradoxo de Chesterton? Enfim, não é só a vida que é breve para uma arte longa; as colunas de jornal também. Terminemos, assim, sugerindo, à maneira de Antonio Candido, que o projeto de que o país precisa deve buscar inspiração naquele resumido no Ibirapuera, a história do povo brasileiro no seu desejo de criar arte, de ter uma cultura própria, de imprimir ao seu mundo, à sua pobre vida, um sentido que só ele pode dar, com seus valores de justiça e ternura, humor e malícia, graça e beleza.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 02/07/2000.