Estou em Bancoc, Tailândia, o epicentro do terremoto financeiro que rachou de alto a baixo o milagre asiático e se propagou em seguida à Rússia, a meio mundo, ao Brasil. Menos de três anos depois, o país volta a crescer. Em 98, tinha sido a catástrofe: um colapso de 10% a menos no PIB, após crescimento ininterrupto durante décadas a 8,5% ao ano.
Uma primeira diferença conosco: apesar disso tudo, não só mantiveram o nível dos gastos sociais em geral como fizeram questão de aumentar os com educação. Logo se vê por que a Ásia está de volta com força ao cenário mundial. As qualidades que fizeram o êxito do continente continuam tão presentes e válidas como antes da crise: alta taxa de poupança e investimento (o dobro da nossa), favorecimento privilegiado dos recursos humanos, sobretudo educação e saúde, inflação e déficit tradicionalmente baixos ou inexistentes, orientação exportadora, forte parceria do governo com o setor empresarial.
Ia esquecendo o fator cultural, o apego aos valores da comunidade, da autonomia e senso de identidade de civilizações e religiões milenares. Estamos em pleno coração de uma das variantes do budismo, a forma mais antiga ou Hinayana (o Caminho Menor). É um povo orgulhoso e independente, o único da região nunca colonizado pelos europeus, mesmo no auge da era do Imperialismo. Graças à inteligente diplomacia de sua elite, que, com flexibilidade, utilizou o jogo das alianças e explorou as rivalidades entre os imperialistas para recusar a submissão a interesses estrangeiros. Como fez na crise, ao dizer não à desnacionalização da economia e do setor bancário, em que só 20% estão nas mãos de estrangeiros. Outra diferença conosco talvez? Nem por isso deixam de exportar US$ 7 bilhões por ano a mais que o Brasil, apesar de serem apenas 60 milhões e terem o tamanho de Minas Gerais.
Devido a todos esses fatores simbólicos, o início de um século, de um milênio, o desenvolvimento como sonho possível, mas sempre ameaçado por pesadelos, a Unctad resolveu realizar aqui uma reflexão sistemática sobre a experiência do desenvolvimento ao longo das últimas décadas. A reflexão tem três objetivos: dar balanço no que passou, o que deu certo ou errado e por quê. Em seguida, indagar o que faltava quando Raul Prebisch fundou a Unctad, em 1964: a preocupação com o meio ambiente e o crescimento sustentável, a questão da qualidade do desenvolvimento, da distribuição da renda, da equidade, o papel das mulheres na economia, a ênfase nos aspectos sociais e no desenvolvimento humano. Por fim, identificar os principais desafios do futuro, desenhar o mapa do caminho a seguir. Dentre esses desafios, destaca-se o do controle da volatilidade financeira, fator de crises, o de fazer os países em desenvolvimento participar mais ativamente do comércio mundial, o da diversificação da base produtiva dessas economias ainda dependentes da exportação de poucas matérias-primas, da incorporação da tecnologia nessa era em que o conhecimento passa a ser a alavanca decisiva da economia.
Para isso teremos grande variedade de perspectivas. Abrimos com mesa-redonda de 11 grandes economistas do desenvolvimento para discutir o estado atual do conhecimento nessa área. Logo depois, sob a presidência de Kofi Annan, discutiremos o trabalho em favor do desenvolvimento com os dirigentes de todas as organizações econômicas e sociais: Pnud, Unido, FAO, OMC etc. Haverá uma sessão só para examinar como o desenvolvimento afetou os diversos continentes e como o regionalismo pode ser a melhor política para adaptar um país à economia global. O debate será conduzido pelos diretores da Cepal e de todas as demais comissões regionais da ONU para a Europa, África, Oriente Médio e Ásia.
Cada dia a discussão será introduzida por uma personalidade eminente da economia. O primeiro será Michel Camdessus, diretor do FMI, que falará sobre seus 13 anos de experiência em lidar com as crises financeiras. O presidente do Banco Mundial, Jim Wolfensohn, exporá sua estratégia de desenvolvimento abrangente, Mike Moore tratará das novas negociações comerciais, Juan Somavia levantará as questões sociais, do desemprego e do trabalho e Enrique Iglesias, a experiência da América Latina.
Um embaixador comentou comigo em Genebra que era o mais ambicioso programa de reunião econômica que ele tinha visto: o problema seria retirar um sentido de tudo isso. A intenção é justamente essa, mostrar que, fenômeno de extraordinária complexidade, o desenvolvimento requer flexibilidade, gradualismo, adaptabilidade, diversidade de políticas e terapias, apropriada sequência de reformas.
Nossa meta é realizar, em suma, o que propôs o ministro da Economia do Reino Unido, Gordon Brown, em recente conferência em Oxford: “Precisamos avançar além do consenso de Washington dos anos 1980, uma criatura do seu tempo, que estreitou nossos objetivos de crescimento e emprego. Que assumiu que os mercados privados haveriam de alocar recursos eficientemente para o crescimento (apenas) por meio da liberalização, da desregulação, da privatização e da liberdade de preços. Isso revelou-se inadequado para as inseguranças e os desafios da globalização”.
E, após sublinhar que a estratégia desejável não pode ser um consenso de Washington, isto é, não pode ser ditada de fora para dentro ou imposta de cima para baixo, concluí: “Temos de encontrar um novo paradigma para o ano 2000”. É o que estamos começando a fazer em Bancoc, no ano zero.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/02/2000.