Escrevo no avião que me conduz a Londres na noite de quarta-feira. Deixo Seattle em pé de guerra, com toque de recolher pelo segundo dia, olhando na TV, ao embarcar, a polícia prendendo centenas de manifestantes e dissolvendo os protestos com gás lacrimogêneo.Era estranha a sensação ontem, dia da inauguração da conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC). Dentro do centro de convenções _quando conseguíamos chegar lá_ era como se estivéssemos no planeta Saturno. Quase todos os oradores haviam trazido discurso pronto, que leram como se nada estivesse acontecendo. Embora assustados ou irritados, timbravam em ignorar a manifestação de massa. Um ou outro fazia alguma menção, quase sempre para condenar; às vezes, em tom condescendente, para lamentar a ignorância, a falta de informação que cegava os contestatários à luz maravilhosa do livre comércio.
Escolhi caminho diferente e procurei mostrar como o desafio à legitimidade do sistema escondia problema mais profundo: a globalização e seus efeitos dilacerantes em termos de insegurança de emprego, desigualdade crescente, medo de que as pessoas estão perdendo o controle sobre suas próprias vidas.
Essa reação contra a globalização investe contra alvos móveis: primeiro foi o Nafta, o acordo de comércio com o México; depois as negociações sobre investimento na OCDE, em Paris; agora a OMC. É paradoxal e até irônico que as pessoas protestem contra o comércio global nas ruas de Seattle, a pátria da Boeing e da Microsoft, esta última o símbolo da economia global.Por que, perguntei a amigos americanos, isso ocorre no momento em que a economia dos EUA vive prosperidade inigualável? A resposta é que só os mais qualificados ou ricos participam verdadeiramente dessa festa. Para os outros, os salários quase não melhoraram em 20 anos, há milhões de “working poors”, como os chama o presidente Clinton, isto é, gente que, apesar de trabalhar oito horas diárias ou mais, não consegue sair da miséria. Existem 40 milhões de americanos sem seguro de saúde e, na própria Microsoft, 5.000 trabalhadores em tempo parcial sem direito a benefícios de saúde. A esses a “Terceira Via” oferece palavras de simpatia nos discursos e cacete, gás e prisão quando descem às ruas.
Com os países pobres não é diferente. Da mesma forma que os trabalhadores americanos, sentem que são excluídos das decisões da OMC (apesar da aparência de consenso) e não participam dos benefícios do comércio. Após duas décadas de rodadas comerciais (Tóquio e Uruguai), encontram-se pior do que nos anos 70: seu déficit comercial aumentou em 3% (mais, no caso brasileiro) e o crescimento econômico é 2% menor (também muito pior em nosso caso).
A legitimidade de qualquer instituição ou sistema depende de um mecanismo decisório democrático, eficiente e da justa participação de todos na repartição de custos e benefícios. Quando isso não sucede, desencadeia-se processo pelo qual as queixas contra decisões cozinhadas por alguns poucos poderosos conduzem à frustração, ao desengano e estes, por sua vez, acabam por produzir um “déficit de legitimidade” para o sistema como um todo.
Gradualmente, aumenta a ingovernabilidade, como se viu em Genebra no processo preparatório de Seattle. Nas reuniões ministeriais como esta última, as decisões são arrancadas de ministros de países pobres ou acovardados, mais vulneráveis à pressão política e que, ao contrário dos negociadores em Genebra, pouco conhecem das complicadas questões de comércio internacional.
Devo dizer que isso nada tem a ver com o Brasil, que, pela voz autorizada do ministro Lampréia, fez pronunciamento firme, sereno, desmistificador desses abusos e desequilíbrios, dos melhores que ouvi. Como brasileiro, senti-me orgulhoso de ver que ao menos nosso país e o Itamaraty não abdicaram da dignidade e recusam fazer coro com os que não só apanham como gostam e aplaudem.
Quando saí de Seattle, infelizmente acumulavam-se os sinais de um novo esbulho dos países em desenvolvimento, não obstante os piedosos e melosos discursos proclamando a necessidade de fazer algo pelos pobres. Espero estar errado e despertar desse modo sorrisos de comiseração nos leitores de domingo, sabedores talvez de que tudo acabou bem como no filme de Nora Ephrom, “Sleepless in Seattle” (não sei o nome no Brasil). Não sendo assim, pergunto-me até quando continuaremos, nós e os manifestantes, a assistir a tudo isso bestificados?
A alusão é obviamente à proclamação da República, à qual teria o povo brasileiro assistido bestificado. Ao menos nesse caso não haveria o que dizer, pois aparentemente o próprio protagonista não sabia o que fazia. Ouvi, de fato, do professor Helio Jaguaribe que seu pai, o ilustre geógrafo general Jaguaribe de Mattos, teria recolhido de testemunha ocular, o marechal Rondon, então alferes de cavalaria, a versão autêntica do que está gritando Deodoro na famosa cena do quadro em que, a cavalo, de quepe para o ar, proclama a República no quartel general. Certo de que se tratava apenas de movimento contra o ministério e de acordo com a prescrição do regulamento militar do Império no momento da formação da tropa, ele estaria a bradar: “Viva Sua Majestade o Imperador…”
Ao contrário do nosso confuso e simpático fundador da República “malgré lui”, os protagonistas da bestificação atual sabem muito bem o que querem e o que fazem.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/12/1999.