“Em toda parte, é tudo de modo diferente”, “überall ist alles anders”, do teto e da parede do hotel, na cidade velha de Zurique, o verso em alemão me interpela. Lá fora a neve, domingo passado, quando o Brasil se banhava em luz e calor, como que confirmava: tudo é diferente, em qualquer lugar a que se vá.
Nove anos, desde que cheguei à Unctad, de viagens engatilhadas uma na outra, parecendo uma só e única viagem que agora chega ao fim. Tudo é outro e diverso, Phnom Penh, no Camboja, e Sana, no Iêmen, Hanói e Zanzibar, Doha, Adis Abeba, Dar-es Salam, Isfahan, Ketu, Ngoro-Ngoro, Chiraz, tão variegado e colorido que a nossa desenxabida ortografia oficial nem sabe como vestir esses suculentos nomes de cidades misteriosas e os acaba reduzindo a uma sombra do esplendor de outras línguas. Também, que se pode esperar de uma “reforma ortográfica” que nos empobreceu com a abolição de capítulos inteiros do dicionário, os das palavras começadas por k, y, w? Viva, pois, Glauber, que não aceitou o “Diktat” dos que, no fundo, querem suprimir a Semana de 22.
Podem pensar que é divagação. Nada mais longe da verdade. Amputar o alfabeto, emagrecer a linguagem, sob o pretexto de que algumas letras não nasceram aqui é reduzir a surpresa do universo à nossa própria e mesquinha medida, é negar que, por toda parte, tudo se faz de modo diferente do que fazemos. É isso que nos tenta dizer o verso do poeta suíço Peter K. Wehli (como vêem, duas letras clandestinas e ilegais já no nome), antigo conhecido, agora o mais novo de meus velhos amigos. Peka, como é chamado pelos íntimos, é sobrevivente de 1968, quando se queria não “mudar de” mas “mudar a” vida. Escreve há 33 anos um Catálogo de Tudo, que, regular e helveticamente, remete aos assinantes. Com as estampas e caracteres tipográficos de cordel de J. Borges, compôs o Catálogo Pernambucano e fez mil outras coisas, muitas delas, livros e filmes de TV, sobre o Brasil. O quarto do vetusto hotel zuriquense onde me hospedei havia sido refeito por ele e pelo artista Hans-Christian Jenssen. Da mesma forma que no vasto mundo, cada quarto é diferente, fruto da colaboração de Jenssen e de um escritor. Hoteleiros, empresários do Brasil, aprendam como se pode ser variado e inteligente!
O teto é revestido por 16 painéis, retalhos de cores deslumbrantes, cada um com um verso à mão de Peter, um pouco do seu tudo, como aquele pai de família do Evangelho que, do seu alforje (palavra, também ela, de origem alienígena, do árabe al-hurg, ensina o “Aurélio”), vai tirando coisas velhas e novas. Um desses poemas nos diz que tudo é diferente, que as coisas e as pessoas por toda parte são de uma variedade infinita, incansável. Contudo, lá ao lado, outro retângulo de cor rebate que, “como os minutos fazem a unidade da hora, assim as experiências são a unidade da vida”.
Num dos painéis, o poeta confessa que “não queria ter de descrever a luz, mas queria que a língua resplandecesse, fosse, ela própria, uma luz, se iluminasse” (em alemão “leuchtet”). De fato, adverte-nos adiante, o perigo é que, “falando, sem querer fazemos do que é novo um ‘déjà vu'”. É com entalhes como esses, incisões na experiência da diversidade, que Peter conta o Brasil, aonde primeiro veio em busca da viagem de seu compatriota Blaise Cendrars, transformada em filme para a TV suíça. Seu gosto pelos nomes é infalível e o arrasta, às vezes, a aventuras como a que ocorreu em Caruaru. Não resistindo ao apelo do nome, ele entrou por uma portinha onde se anunciava “O Prazer de Comer”, apenas para descobrir que era a oficina de pintura onde a empregada pendurara para secar a tabuleta fresca encomendada pelo restaurante… Em Fortaleza, desencavou, abandonado às moscas, um bar igualmente irresistível: “A Sombra do Passado”.
Procurei para ver se encontrava no Catálogo de Tudo algo apropriado para esse dia difícil entre todos que é o domingo após o Natal, o dia depois da festa, o anticlímax por excelência, dia de restos requentados, de brinquedos que perderam a novidade, de almanaques já lidos, a “cena desnecessária ou absurda, em relação ao clímax que a precede”. Não encontrei, mas a definição do dicionário, sobretudo a referência à cena absurda, me recordou história ocorrida com meu velho e caríssimo amigo Romeo Zero, artista de fina e rara sensibilidade. Um 26 de dezembro, na Itália o mais defunto de todos os dias, Romeo decidiu visitar o Palazzo Ducale, em Urbino. Chegou à cidade amortalhada em nevoeiro espesso, tudo hermeticamente trancafiado. Buscando famélico, com a família, um canto onde almoçar, não enxergava ninguém a quem perguntar até que, do fundo da neblina, vê emergir, como em filme de Fellini, figura espectral, coberta de panos, que só lhe responde com voz cavernosa “Urbino è morta, Urbino è morta”! Romeo mete-se no carro e parte rápido para nunca mais voltar.
Em meu caso, espero que a história acabe bem. Angustiado em saber como será minha volta a São Paulo, de onde parti, 45 anos atrás, olho o teto e leio, consolado: “Só quem no mundo esteve pode se reencontrar e reconhecer em sua aldeia”. Se, no momento seguinte, volta a atacar-me a inquietação de partir de novo, aquele vício que está na raiz do destino de diplomatas e aventureiros, passo ao painel-síntese e lá conforta-me o convite à viagem infinita e interminável, não o repouso do Nirvana nem a monotonia dos paraísos imóveis e congelados, mas a certeza de que, “quando o caminho é a própria meta, então é a felicidade, a ventura das venturas!”
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Errata: Devo desculpas aos leitores por ter atribuído a “La Luna e il Falò”, de Cesare Pavese, a citação que abre o artigo “Um poço de luz” (31/10/2004). Longe dos meus livros quando escrevi o artigo, a memória confundiu as obras. A citação se encontra, com efeito, em outro romance de Pavese, “La Casa in Collina”. Com minhas desculpas, vão os votos de feliz Ano Novo!
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/12/2004.