“Em 1898 as perspectivas financeiras do Brasil eram péssimas.” É só mudar o segundo algarismo para que a sentença categórica, extraída de obra de divulgação da história brasileira, possa servir, sem tirar nem pôr, para descrever o ano que findamos (e o que iniciamos).
As semelhanças não se limitam ao atacado, mas proliferam no varejo. Faz um século, o país quebrado, sem crédito externo, assinava o “Funding Loan”, negociado em Londres por Campos Sales, antes de assumir a Presidência em 15 de novembro, como era então costume.
A diferença é que se negociava diretamente com os banqueiros de Londres, no caso o banco Rothschild, e antes com seu emissário ao Brasil, Mister Tootal (o que deu origem à pilhéria de que teríamos enfim a “moratória total”). Hoje os acordos são negociados e assinados com o Fundo Monetário. Os neoliberais, que não gostam de intermediários, devem achar um desperdício ter- se abandonado a salutar disciplina imposta pelos banqueiros.
As condições eram, de fato, draconianas. Em garantia do novo empréstimo, o governo hipotecava a receita da alfândega do Rio de Janeiro e, se necessário, dos outros portos. Ficava proibido contrair novos empréstimos por três anos e as autoridades se obrigavam a retirar de circulação uma quantidade de papel- moeda equivalente aos títulos do empréstimo.
Eis como um autor conceituado descreve a operação: “Coube a Campos Sales ‘sanear’ (aspas no original) as finanças, executando as políticas a que o país se comprometera com o Funding Loan: deflação, equilíbrio orçamentário, restauração do imposto pago em ouro nas alfândegas (…), cortou-se drasticamente o gasto público (que em 1902 estava 44% mais baixo do que em 1897/98), como o destinado ao investimento público, que em 1902 reduzira-se à terceira parte dos níveis já baixos de 1898”.
E o analista conclui: “O resultado de tal contenção foi, naturalmente, uma crise interna sem paralelo na história econômica do Brasil. Não apenas se ‘corrigira’ (aspas no original) a euforia industrial-financeira do período militar da República, como se procedera a uma quebra de quase metade do sistema bancário e à queda de 30% nos preços”.
Mas as semelhanças não se detêm aí, pois o problema subjacente vinha de longe. O mesmo autor que tomamos por guia observa: “Vêem-se, pois, delineadas e confrontadas desde o início da República duas correntes distintas. À primeira ‘industrializante’ _e frequentemente especulativa, inflacionista e cavadora de negócios, embora no fundamental portadora de valores de progresso (…), _contrapunha-se uma segunda corrente, mais sólida e conservadora. A crítica ao encilhamento, aos déficits crescentes, à ‘artificialidade’ da indústria nacional que importava insumos e estafava o consumidor nacional (…), opunham-se os bem-pensantes porta-vozes da ‘fonte da riqueza nacional’: os cafeicultores (…que…) viam com suspeição o favoritismo à indústria e (sua) repercussão no (…) mais sagrado para (…as…) consciências: o crédito externo e a taxa de câmbio”.
Não é, como poderia parecer, a controvérsia entre o presidente do Banco Central e o ex-ministro das Comunicações, entre o modelo de estabilização atual, de um lado, e partidários do Ministério do Desenvolvimento, do outro. Tudo o que descrevemos passa-se há cem anos e qualquer semelhança com eventos ou personalidades atuais é mera coincidência. A sequência dos fatos é realmente inversa, lembrando nosso autor que era fácil a crítica à posição industrializante, já que as políticas anteriores tinham favorecido o protecionismo a banqueiros, sob pretexto da defesa de indústrias endividadas. De acordo com a mesma fonte, haveria até certa ingenuidade na crença de Rui Barbosa de que: “A República se consolidará entre nós em bases seguras, quando o seu funcionamento repousar sobre a democracia do trabalho industrial”.
A fim de terminar com tudo isso, inaugura-se, como passou a ser recorrente em nossa história contemporânea, uma dessas fases de sangue, suor e lágrimas, supostamente necessárias para acabar, de vez por todas, com as distorções e desequilíbrios. Assim como a Primeira Guerra Mundial ia ser a “guerra para acabar com todas as guerras”. Em Minas, por exemplo, não se conseguindo implantar o imposto territorial devido à resistência dos fazendeiros, o governo corta despesas impiedosamente, reduz salários, fecha centenas de escolas. A ponto tal, conta João Camilo de Oliveira Torres em “História de Minas Gerais”, que o presidente do Estado, Silviano Brandão, como no Fado Tropical, chorava ao assinar decretos, “pois compreendia vivamente que estava levando o mal a amplos setores do povo, mas não lhe restava outro meio”.
Voltemos, enfim, para concluir, ao autor do texto aqui citado repetidamente. Ele não é outro senão o professor Fernando Henrique Cardoso, escrevendo em 1975 para a “História da Civilização Brasileira”. A história que ele descreve tem um final feliz. Os governos paulistas de Prudente de Morais e Campos Sales põem um paradeiro à diretriz “industrialista”, “proclama-se a ortodoxia monetarista como norma” e prepara-se a ascensão de Rodrigues Alves. Este, “sem ter de fazer face a contendores de monta (o radicalismo dito de “classe média” continua a opor- se à “oligarquia”, mas não tem forças para contestar o êxito econômico do governo), espalha pelo país (…) uma aura de modernidade e cientismo pragmático (…). Só que agora, uma vez mais, a “revolução” se faz dentro da ordem e esta já não se define pelo ardor cívico (…), mas pela racionalidade empresária (…). Uma nova classe constituíra-se não apenas em bloco de sustentação do Poder, mas em segmento dirigente da República”.
Movidos pelo espírito natalino, só nos resta desejar que a história se repita.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/12/1998.