Entre esses sentimentos, contrários, mas igualmente destruidores, oscila violentamente a economia mundial deste fim de ano. Quem viu, como eu, em 1954, no festival do 4º centenário de São Paulo, “Greed”, o belo filme mudo de Erich Von Strohein, ou os mais jovens, que assistiram a “O Tesouro de Sierra Madre”, de John Houston, sabem que a cobiça com frequência gera o pânico e o aniquilamento.
Qual vai predominar e determinar se teremos no ano que vem mais ou menos crise? Na coluna dos fatos recentes alimentados da cobiça, alinhemos: a sucessão de três reduções de juros em menos de dois meses nos EUA, provocando a recuperação da Bolsa em 17% em um mês e a volta do Dow Jones a 9.000 pontos; a aprovação pelo Congresso americano dos recursos elevando a US$ 90 bilhões as disponibilidades do FMI; o alívio político trazido a Clinton pelas eleições; a aprovação pela Dieta japonesa do programa de reestruturação bancária; o anúncio de pacote fiscal de quase US$ 200 bilhões para estimular a economia nipônica e do Plano Miyazawa para reativar o crescimento asiático; a convergência dos juros europeus para a taxa alemã de 3,3% e os apelos dos socialistas, que dominam 13 dos 15 governos do continente, em favor de medidas para acelerar o crescimento e combater o desemprego; finalmente, o pacote de ajuda ao Brasil, visto pela vez primeira como o país-chave do qual dependerá a recuperação ou a deterioração da economia mundial, a linha de defesa contra o contágio no qual proclama a bandeira: “No Pasarán”.
Mas, como em toda contabilidade em partida dupla, há também a outra coluna, a das razões inspiradoras do pânico, em que se lê: a desaceleração da produção industrial, das exportações (e importações) americanas, indício de que o ciclo de expansão perde fôlego; o registro, pela primeira vez desde 1959, de que a taxa de poupança familiar se tornou negativa e o consumo está sendo sustentado nos EUA pela expectativa de ganhos não realizados no mercado de ações; a sensível baixa na taxa de lucratividade das empresas, o déficit comercial que se aproxima de US$ 200 bilhões e espicaça ações protecionistas, como as do aço; a persistência no Japão de dúvidas sobre a recuperação bancária, mesmo após a aprovação de lei de reestruturação e o aprofundamento da recessão, apesar de sete pacotes de estímulo; a redução das previsões de crescimento europeu pela Comissão Européia e pela organização das economias avançadas, a OCDE; a permanência de polpudos saldos comerciais da ordem de US$ 120 bilhões cada um, por parte do Japão e da Europa, o que impede a reativação do comércio internacional, pois, além dos EUA, já perto do limite, devido ao gigantesco déficit, nenhuma das duas outras grandes economias excedentárias se dispõe a atuar como fonte de demanda de importações dos países emergentes; por fim, a lentidão da recuperação asiática, região em que as economias se estabilizaram em termos de moedas e Bolsa, mas não conseguiram voltar a crescer.
O que deduzir do balanço das duas colunas? Ambas são recheadas de fatos reais, recentes e significativos. Mas, como na imagem de Braudel, segundo a qual os eventos são como os vaga-lumes na noite brasileira _brilham, mas não iluminam a estrada_, esses fatos de luz verde ou vermelha em parte se neutralizam. Indicam que, dependendo de algo inesperado, pode-se seguir um curso ou seu contrário.
O mais provável, por isso mesmo, não é a recessão global como nos anos 30 (embora mais amena) nem o crescimento satisfatório da economia mundial a taxa superior a 3%. Devemos preparar-nos para cenário intermediário, medíocre, desbotado, de crescimento por volta de 1,5%, insuficiente para eliminar o desemprego estrutural e a pobreza. Refiro-me, é óbvio, não ao Brasil, cujas perspectivas são mais sombrias, mas ao mundo. Pois a crise atual é completamente diferente das anteriores, quase sempre causadas pela combinação de aumento do preço do petróleo, inflação ascendente, déficits orçamentários e altos juros. Desta vez temos queda de 40% do petróleo em 12 meses, inflação em extinção (no ano até outubro, os preços por atacado na Alemanha caíram em 4,6%), só três países com déficits orçamentários graves (Brasil, Japão e Rússia) e juros baixíssimos, em alguns casos negativos no longo e curto prazo (menos no Brasil, evidentemente).
Como diz fonte das mais impecáveis, o boletim de JP Morgan, não se trata de “ato de Deus”, de fenômeno principalmente induzido de fora, da Ásia ou da Rússia. É a banda podre da globalização financeira. A “exuberância irracional”, apoiada nos EUA em economia robusta e sólido sistema financeiro, gerou excesso de confiança na expansão eterna da Bolsa e levou a atitude complacente em relação a riscos, não só na América, mas mundo afora. Sucede, porém, que até no mundo de baixa inflação e equilíbrio orçamentário “o potencial de desestabilização de ciclos de crédito puramente privados, entregues a si próprios, frequentemente produz ciclos do tipo “boom-bust” (expansão – explosão). Foi verdade no Japão em 1989, na Ásia em 1997, e começa a ser nos EUA.
Em outras palavras, a cobiça é castigada pelo pânico, mais cedo ou mais tarde. Diante disso, talvez seja hora de lembrar, como o Padre Vieira, que o remédio não é aumentar a fazenda, mas controlar e limitar a cobiça.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 21/11/1998.