Faz sentido comemorar os 500 anos do Descobrimento, que representa para os índios o início do extermínio e para os negros quase quatro séculos de cativeiro, no momento em que a igreja pede perdão pela sua cumplicidade nesses crimes e em outros?

Escrevo na noite de 9 de março, o dia em que as caravelas de Cabral deixaram o Tejo. As notícias sobre as reações contrárias dos que foram e são os perdedores do Descobrimento e da história do Brasil fazem pensar. Teremos a repetição do que ocorreu no México e em muitos países da América espanhola em 1992, no 5º centenário da chegada de Colombo? Ou na Índia, no ano passado, aniversário da viagem de Vasco da Gama? Nas duas ocasiões, os festeiros tiveram de arrepiar carreira e as celebrações, embora não canceladas, foram conduzidas de modo sóbrio, às vezes quase envergonhado, pedindo desculpas.

Será que não temos mais o direito de comemorar datas como essas, que despertam emoções, até mesmo paixões, violentamente contraditórias? Foi a pergunta que me fiz ao participar esta manhã de entrevista de imprensa em Genebra. Éramos um pequeno grupo, suíço na sua maioria. Gente comum, das várias cidades e regiões deste país de diversas línguas. Sem nenhuma ligação com governos, sem poder nem dinheiro, unida apenas pelo amor ao povo brasileiro, que decidiu montar um programa para não deixar que o aniversário do Brasil passasse em branca nuvem. Quem teria a coragem de dizer-lhes: “Esqueçam, voltem para casa, não há nada a celebrar”?

Desde que não se caia no triunfalismo simplista, no ufanismo provocador, não vejo por que não se aproveite a oportunidade para fazer o que nos convida a raiz etimológica de comemorar, isto é, lembrar juntos, em comunidade, recordar, quer dizer, reviver no coração, no sentimento. E fazê-lo por meio de uma reflexão crítica que dê balanço em 500 anos de história, tentando responder a algumas perguntas fundamentais: o que deu certo ou errado e por quê? O que faltou desde o início? O que resta a fazer?

Nesse exercício, a primeira armadilha a evitar é o que Fustel de Coulanges considerava o pior erro do historiador: julgar uma época histórica aplicando-lhe valores e padrões de comportamento de fases posteriores. O conselho pode, é certo, conduzir ao erro oposto: o do relativismo histórico, o de justificar tudo o que se fez simplesmente porque assim foi feito.

Contra tal risco o melhor antídoto em nosso caso é lembrar que os atores da colonização diziam-se cristãos e até pretendiam que seu móvil principal era propagar a fé de Cristo. Ora, por mais que teólogos e prelados se tenham contorcido em acrobacias e casuísmos morais, não há como justificar à luz do Evangelho os crimes cometidos. Seus perpetradores têm, portanto, que ser condenados, não devido aos nossos critérios ou em obediência ao “politicamente correto”, mas em razão dos valores que eles mesmos professaram de boca e violavam de fato.

Não faltaram, mesmo na época, vozes eloquentes para condenar a conquista da América, a destruição e a escravização dos índios, a imposição do Evangelho pela força. Nada em nossos padrões atuais é moral ou intelectualmente superior ao que pregaram ou escreveram nesse sentido os grandes dominicanos espanhóis Francisco de Vitória e Bartolomé de las Casas ou os jesuítas portugueses no Brasil, culminando no maior deles, o padre Antonio Vieira.

Tampouco serve de escusa dizer que eles não constituíam a maioria do clero ou dos teólogos. Os profetas nunca são maioria e nessa matéria a regra democrática do maior número tem escasso peso. Antes, o precedente histórico deveria abrir-nos os olhos para não continuarmos hoje o mesmo erro, ao ignorar o sentido profético de vidas minoritárias como a de dom Hélder, de Paulo Evaristo Arns, de Pedro Casaldáliga, de outros derrotados, religiosos ou leigos, cristãos ou ateus, que tiveram e têm fome e sede de justiça.

Pois o dilema da história, em 1500 ou em nossos dias, é o mesmo: aceitar por conformismo ou interesse injustiças e comportamentos negadores dos valores humanos, a pretexto de que as mudanças históricas os tornam inevitáveis, ou resistir contra a corrente, em nome da justiça e da dignidade do homem.

No fundo, o debate sobre os aspectos desumanizadores da globalização não é diferente em essência da discussão moral sobre a colonização e os índios. Os que invocam a eficiência ou o determinismo dos mercados para afastar como irrelevantes os argumentos éticos contra as monstruosidades atuais não diferem muito na alma e no coração dos que julgavam os índios gente “sem rei, sem lei, sem grei”. Ou dos que acharam perfeitamente natural caçar como bichos na África e trazer para a América em condições atrozes mais de 11 milhões de homens, mulheres e crianças, dos quais o Brasil recebeu a maior parcela, cerca de 4 milhões (à América do Norte só corresponderam 500 mil). O tráfico dos escravos foi componente essencial do capitalismo mercantilista, contribuiu poderosamente para a acumulação de capital e o crescimento do comércio na pré-história da globalização e fez a fortuna de Bolsas e mercados nos países ibéricos, na Holanda, na França e na Inglaterra. Hoje o consideramos monstruoso e incompreensível, mas os defensores da globalização de 1600 ou 1700, a chamada “opinião dos mercados”, a Wall Street da época, pensavam ou fingiam pensar que se tratava de forma inteiramente lícita de ganhar dinheiro. No Brasil, quando a Lei Eusébio de Queiroz acabou tardiamente com o tráfico, em 1850, dizia-se que iria arruinar os mercados e o comércio (foi o contrário o que aconteceu).

Esses precedentes nos convidam a refletir sobre a necessidade de dotar a economia de consciência moral se queremos evitar repetir, sob forma atualizada, a espoliação e a opressão da era do Descobrimento. E moral aqui significa algo mais que respeitar os contratos ou não enganar os acionistas. Do contrário, poderíamos acabar como aquele czar búlgaro do poema de Drummond, que gostava de caçar homens e escandalizou-se muito quando lhe foram dizer que em alguns países se caçavam borboletas…

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/03/2000.