Quando me dei conta de que este artigo sairia no dia 26, fiquei com vontade de contar uma história. Graças a meu filho, andei lendo Walter Benjamin. Em um de seus ensaios, ele diz que perdemos a capacidade de narrar porque não somos mais capazes de transmitir experiências. A informação da notícia matou a experiência do conto. A informação diz tudo o que é preciso saber sobre o que acabou de acontecer, não deixa nada por explicar ou interpretar.

Em compensação, o interesse da notícia não resiste a alguns dias, enquanto a magia da história não morre, pois cada um encontrará nela coisas novas.Benjamin dá como exemplo um conto de Hebel de que eu gostava muito quando tentava, sem grande sucesso, aprender alemão em Viena, há 36 anos.

Ele destacava sobretudo como Hebel havia estabelecido uma ligação entre a passagem do tempo na vida da gente humilde de sua narrativa com a grande História com maiúscula. De um lado, nada ocorre, salvo o tempo que passa; do outro, a sucessão de acontecimentos maiores ou menores. Um só ponto comum entre um e outro: a morte, que reaparece com frequência sob a forma de ceifador.Como, daí, cheguei ao Natal? Lembrei-me primeiro de outra enumeração, a da vocação de João Batista no evangelho de Lucas, antes do nascimento de Jesus.

Só que Hebel liga a história natural ao conto para ilustrar, pela sucessão de eventos, o fluxo do tempo. Já Lucas fica no plano horizontal, relaciona todas as autoridades do seu tempo, para inserir nessa realidade prosaica o maravilhoso da intervenção de Deus no tempo dos homens.

De dicionário em punho, traduzi o velho conto, tratando de conservar as repetições, a pontuação, os longos parágrafos, o sabor do texto original de narrativa do povo. O que tem isso a ver com a coluna “Opinião Econômica”? Nada ou talvez o fato de que tudo se passa numa mina de ferro. Que importa? Uma vez ao menos convém, em lugar de servir informação ou comentário, que é informação requentada, transmitir a experiência de mulheres e homens que aprenderam com Jesus que o amor é mais forte do que a morte. Vamos, pois, ao conto “Inesperado reencontro”, de Johann Peter Hebel.

Em Falun, na Suécia, há uns bons 50 anos e mais, um jovem mineiro beijou sua jovem e linda noiva e lhe disse: “No dia de Santa Luzia, o nosso amor será abençoado pela mão do padre. Seremos então marido e mulher e construiremos o nosso próprio pequeno ninho”. “E a paz e o amor morarão nele”, disse com sorriso alegre a bela noiva, “pois Você é o meu único e o meu tudo, e sem Você prefiro estar no túmulo do que em qualquer outro lugar”. Mas quando, antes de Santa Luzia, o pároco pela segunda vez proclamou na igreja: “Se alguém conhece um obstáculo que impeça essas pessoas de se casarem, que fale agora”, quem se anunciou foi a morte. Na manhã seguinte, o jovem mineiro, com o uniforme negro de trabalho _os mineiros vestem sempre sua roupa mortuária_, ao passar pela casa dela, bateu ainda uma vez em sua janela e lhe disse bom dia, mas nunca mais lhe disse boa noite. Ele jamais voltou da mina e ela continuou na mesma manhã a bordar em vão um lenço de pescoço preto com borda vermelha para o dia do casamento, mas, como ele não retornou nunca mais, ela pôs o lenço de lado e chorou por ele e jamais o esqueceu.

Enquanto isso, a cidade de Lisboa em Portugal foi destruída por um terremoto, e a Guerra dos Sete Anos veio e se foi, e o Imperador Francisco 1º morreu, e a Ordem dos Jesuítas foi dissolvida e a Polônia partilhada, e a Imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi executado, a América tornou-se independente, e as forças aliadas francesas e espanholas não conseguiram capturar Gibraltar. Os turcos cercaram o general Stein na Caverna dos Veteranos na Hungria, e o Imperador José também morreu. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finlândia russa, e a Revolução Francesa e a longa guerra começaram, e o Imperador Leopoldo 2º foi também para o seu túmulo. Napoleão conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses semearam e colheram.

Os moleiros moeram, os ferreiros martelaram, e os mineiros escavaram em busca de veios de metal em suas oficinas subterrâneas. Mas, quando os mineiros em Falun, no ano de 1809, pouco antes ou depois do Dia de São João, quiseram cavar uma abertura entre dois poços, a uns bons 300 metros de profundidade, desenterraram do meio dos entulhos e da água vitriólica o cadáver de um jovem completamente encharcado de sulfato de ferro, mas, exceto isso, intacto e inalterado de tal modo que se podiam reconhecer perfeitamente os traços do rosto e a idade, como se ele tivesse morrido uma hora antes ou tivesse caído um momento no sono durante o trabalho. Todavia, ao ser finalmente trazido para fora, pai e mãe, amigos e conhecidos estavam todos mortos há muito tempo e ninguém mais conhecia o moço adormecido ou sabia algo do seu infortúnio, até que apareceu a antiga prometida do mineiro que um dia havia descido ao poço para nunca mais voltar. Grisalha e encarquilhada, ela veio de muletas até a praça e reconheceu seu noivo; e, mais com alegre encantamento do que dor, reclinou-se até o amado corpo e, como se, após prolongada e violenta comoção, tivesse conseguido recobrar o alento, disse enfim: “Este é meu noivo pelo qual estive de luto por 50 anos, e que Deus me deixa ver uma vez mais antes do meu fim. Oito dias antes do nosso casamento, ele desceu debaixo da terra e nunca mais voltou”.

Todos os circunstantes foram invadidos pela tristeza e lágrimas, ao contemplarem a antiga noiva já sem forças ou viço devido à idade, enquanto o noivo preservara sua beleza juvenil, e como, após 50 anos, a chama do amor da mocidade ainda uma vez despertava em seu peito; ele, entretanto, não abriu mais a boca para sorrir ou os olhos para reconhecer; e afinal os mineiros o levaram ao quartinho dela, por ser a única que lhe pertencia e a ele tinha algum direito, até que seu túmulo fosse preparado no cemitério. No dia seguinte, quando a sepultura ficou pronta e os mineiros o foram buscar, ela abriu uma caixinha e amarrou em seu pescoço o lenço de seda preta com as bordas vermelhas e o acompanhou em seu vestido de domingo, como se fosse o dia do casamento e não o do enterro dele. Então, ao ser ele deposto no túmulo do cemitério, ela disse: “Durma bem, ainda um dia ou dez, na fria cama de casado, e não deixe que o tempo te seja longo. Tenho pouca coisa a fazer ainda e volto logo, e em breve será dia de novo. O que a terra uma vez devolveu, ela não há de reter uma segunda vez”, disse ao ir embora e olhar para trás uma vez ainda.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/12/1999.