É ou era o nome do que Bernanos descreveu como o “mais miserável dos bairros de Barbacena”, onde tinha sua casa. Quantos brasileiros sabem que, durante sete anos de exílio na época da Segunda Guerra, viveu entre nós aquele que André Malraux chamou de “maior romancista do seu tempo”?

Comparou-o a Dostoievsky porque, enquanto outros escritores buscam governar os personagens que criam, ambos tentaram, ao contrário, perder-se nos seus.

Há um mês, mais ou menos, comemorou-se o cinquentenário da morte do autor de “Diário de um Pároco de Aldeia” e “Sob o Sol de Satã”, de um homem que possuía o dom de tornar natural o sobrenatural, como disse François Mauriac.

Mas Bernanos não era apenas íntimo do sobrenatural. Como todos os que captam o sentido escondido e profundo das coisas, ele enxergava claro onde os demais só percebiam o turbilhão confuso dos acontecimentos. Dizia por isso que o mundo será salvo pelos pobres, precisamente por esses “que a sociedade moderna elimina sem destruir, pois são tão pouco capazes de se adaptar a ela como esta é capaz de assimilá-los, até que a engenhosa paciência deles acabe por prevalecer sobre a ferocidade dela”.

Salvarão o mundo, sem querer, apesar deles mesmos, não pedindo nada em troca por não saber o preço do serviço prestado. Será como em cada fim de mês, quando discutem com o farmacêutico, o dono do armazém as complicações prodigiosas para fazer com que a roupa do menino se estique à medida que ele cresce, para que o sapato furado continue em uso. “A fim de equilibrar orçamentos impossíveis em cima da ponta de um alfinete, é preciso mais gênio do que para ficar milionário.”

Esperam pelo amanhã, pelo depois de amanhã, pelo domingo, e é a esperança que lhes torna tão cara uma vida cuja minuciosa, interminável angústia nem sequer lhes é aparente.

Da mesma forma que Péguy, Bernanos foi dos que melhor souberam desvendar a natureza da esperança. Começa por diferenciá-la do que o resto do mundo chama “esperar” e que não é senão desejar cobiçar, reivindicar, exigir, isto é, o desejo de desfrutar a expectativa do gozo não é a esperança, mas um delírio, uma agonia.

Por outro lado, o mundo não tem mais o tempo de esperar, pois vive depressa demais. “A vida interior do homem moderno tem ritmo excessivamente rápido para que se possa formar e amadurecer sentimento tão ardente e terno (…) O mundo moderno não tem tempo de esperar nem de amar nem de sonhar. São os pobres que esperam em seu lugar (…) A tradição da humilde esperança está entre as mãos dos pobres, assim como as velhas operárias guardam o segredo de certos ponto de renda que as máquinas não logram imitar.”

Um dia, os mansos herdarão a terra simplesmente por não haver perdido o hábito da esperança em um mundo de desesperados. Mas não por muito tempo, pois “o papel dos pobres na sociedade humana é comparável ao da mulher na família ou, melhor ainda, dessas velhas parentas que permaneceram solteiras, que fazem a honra e a prosperidade das famílias (…) e morrem com o remorso de ter sido um peso para todos”.

Mas, afinal, o que tem isso a ver com uma coluna de opinião econômica? Tudo, pois a economia só marcha quando as pessoas têm expectativas positivas quanto ao futuro, em outras palavras, quando possuem esperança.

O Japão não consegue há oito anos sair da crise não apenas devido a políticas equivocadas (em fim de contas já aplicaram sete pacotes de gigantescos estímulos à economia). O problema é que, quando o governo reduz impostos, os japoneses, em vez de consumir, preferem poupar por não esperarem nada de bom nem das autoridades nem do futuro.

A antípoda é a economia americana, a melhor do mundo, na qual os cidadãos gastam o que têm e o que não têm, endividam-se não só pra consumir, mas para investir, especular, pois esperam que a Bolsa amanhã irá subir mais que hoje.

Na França, dizem os críticos, as condições da retomada estavam presentes havia anos. Foi preciso, porém, a mudança da liderança para Jospin, a fim de que o povo voltasse a esperar e a consumir.

Já na Ásia ou na Rússia, a confiança não se restabelece, não obstante o FMI e outros esforços.

Por que é assim? Simplesmente porque a economia é feita por homens e mulheres de carne e osso, não abstrações, pessoas que se movem por fatores psicológicos, emoções, confiança e esperança.

Entre nós, na nossa América, essas qualidades parece que desapareceram, apesar de termos tido um dia uma cidade que já foi chamada “Capital da Esperança”. Como diz meu amigo Sérgio Danese, o Novo Mundo não somos mais nós, e sim eles.

Quando vejo na Suíça os milhares de brasileiros e latino-americanos humildes que para cá vieram para ter salário melhor, comprar um carrinho, talvez um terreno no Brasil, mandar os filhos à escola, penso em meus avós e nos de outros milhões de brasileiros.

Cem anos atrás, nossos antepassados cruzaram o Atlântico em sentido contrário em busca de vida melhor, empurrados não pelo desespero, mas pela esperança. Nossa sociedade tornou-se, contudo, tão incapaz de proporcionar oportunidades que a esperança mudou de lado. Hoje, até os sem nenhuma qualificação a não ser a força dos braços e a esperança no coração encontram melhores condições aqui do que na terra onde os líderes desaprenderam o ofício de criar razões válidas para esperar.

Georges Bernanos lembrava o ensinamento do cristianismo, de que se deve procurar a Deus nos seus pobres. Assim, ele havia compreendido e amado o Brasil por meio da gente modesta e sofredora de Minas. Só se pode conhecer um país, dizia, pelas suas crianças e seus pobres. Na Cruz das Almas, porém, criança e pobre eram sinônimos.

O que emocionou de início foi a resistência desses pequenos à miséria, ao frio, à fome. O princípio dessa resistência não estava em seus músculos frágeis, “mas nesse olhar magnífico, cheio de uma vontade de viver ao mesmo tempo humilde e feroz, esse olhar estranho que jamais vi em qualquer das nossas crianças (…que) exprime a mesma paciência indomável que a própria morte não desarmará, pois esse olhar não se desviará dela, como não se desviou da vida (…)

É o olhar de um povo que deverá sua liberdade apenas a si próprio, de um povo formado para a liberdade, pois não a recebeu de ninguém, mas a conquistou dia a dia, pagou-a com seu labor obscuro, seus sacrifícios sem-número, sua paciência, sua fé, porque ele como que a arrancou das entranhas do solo natal, das entranhas da pátria”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 22/08/1998.