Quem pode esquecer a cena fantasmagórica que encerra “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman? Silhueta negra contra o céu luminoso, a Morte conduz em passo de dança seu rebanho variado. Cavaleiros e plebeus, velhos e jovens, todos enfim nivelados pela verdade lacônica que encima o portão do cemitério suíço de Céligny, onde dormem Vilfredo Paretto e Richard Burton: “Ici l’égalité”, “Aqui, a igualdade”.
O tema da dança é frequente nos murais dedicados à peste negra do século 14, dos quais a obra-prima é “O Triunfo da Morte”, do Camposanto de Pisa. Atração do deboche _comamos e bebamos, pois amanhã morreremos_, a imagem evoca o desespero diante da inevitabilidade da ciranda infernal que contamina, um após outro, todos os viventes.
A dança macabra da peste anunciou no passado o fim do mundo da Idade Média. No fim deste outro mundo, o de um século brutal de atrocidades e contradições, já não são tanto as epidemias, embora estas não faltem, que marcam o compasso da angústia. Outra peste, a do desemprego de massa, paralisa os corações e assombra os governos.
É como uma maldição recorrente, ou, para continuar com o baile, a quadrilha de antigamente, em que, ao comando de “changez de place”, nossos avôs e avós mudavam de lugar no salão. Veja, por exemplo, o que ocorre atualmente na França. Oito meses atrás, o governo de direita, que derrotara os socialistas com a bandeira do desemprego e das “fraturas sociais”, declarou que desejava ser julgado nesse terreno. Assim foi feito e Alain Juppé acabou desalojado pelo mesmo problema que o levava ao poder. De volta ao governo, os socialistas de Jospin pensavam ter aprendido a lição. Deram prioridade à luta contra a desocupação, inventaram milhares de empregos para os jovens, entraram até em conflito com o patronato por causa da semana de 35 horas.
Mas o desemprego, como toda peste e erva daninha, não se entrega, tem sete vidas e 70 vezes sete fôlegos. Os sem-emprego, mais de 3 milhões (quase 4,5 milhões na Alemanha), se desesperam e, como os nossos sem-terra, os sem-teto, os sem-comida ou os sem-escola, terminam, cedo ou tarde, por passar à ação direta, às ocupações ilegais, às manifestações violentas, neste caso para reclamar o aumento das compensações por desemprego que as levariam quase ao nível do salário mínimo. Não podendo ou querendo ceder, o governo se vê arrastado fatalmente à repressão de seus aliados naturais, começa a despencar nas sondagens e prepara a futura derrota e nova troca de lugar.
Haverá saída desse círculo de giz intransponível, dessa bruxaria que lembra o Bunuel de “O Anjo Exterminador”, quando os convidados não conseguem transpor a porta aberta?
Há, na verdade, uma solução clara e incontestável, válida na Europa e no Brasil. No fundo, só a aceleração do crescimento trazido pelo investimento e o aumento da demanda podem nos fazer sair do impasse. É o que vem lembrar o prêmio Nobel de economia de 1985, o italiano Franco Modigliani, em artigo no qual adverte que o fracasso europeu em resolver neste momento o problema dos desempregados põe em perigo o futuro da moeda única, pois o agravamento da crise social pode obrigar alguns países a se desembaraçarem da camisa-de-força da união monetária.
Mostra o autor que o desemprego médio na Europa saltou de 3%, nos anos 60 e início dos 70, para 11% agora, quase quatro vezes mais. Essa explosão do desemprego coincidiu com a redução de um terço da porcentagem do PIB dedicada ao investimento, o que não ocorreu nos EUA, onde a proporção dos investimentos se manteve estável.
O problema vem de que os europeus consideram o nível de desemprego como tarefa de cada país em separado e não responsabilidade da União. Ao mesmo tempo, porém, retirou-se das mãos dos países membros todo o instrumental para influir sobre a demanda, tanto em política monetária como na de orçamento, rigidamente controladas pelo “pacto de estabilidade”. A saída sensata, segundo Modigliani, seria um plano em nível europeu que fixe metas de criação de emprego a serem alcançadas mediante o aumento significativo do investimento público e privado. Seria necessário redefinir o pacto, tornando compulsório o equilíbrio dos gastos orçamentários correntes, mas permitindo o financiamento de despesas de investimento pela dívida pública.
Reconhece o professor emérito do MIT que a rigidez do mercado de trabalho contribui para agravar a situação, mas recorda (o que também se aplica a nós) que “remover a rigidez não fará o desemprego voltar ao nível dos 60 sem uma correspondente recuperação do nível dos investimentos”.
Aliás, o mito da flexibilidade foi reduzido à sua real dimensão pelo professor Stephen Nickell, de Oxford, no trabalho “Unemployment and labor market rigidities: Europe versus North America”. Sem negar que é desejável eliminar as modalidades mais perniciosas de rigidez, o estudo demonstra que:
1) no período de 1983-1996, a média de desemprego nos EUA foi de 7,8%, não obstante a forte flexibilidade do mercado de trabalho;
2) a baixa do nível nos últimos anos se deve à aceleração do crescimento;
3) 30% da população dos países industrializados europeus vive em nações de menores taxas de desemprego que os EUA e com sistemas de trabalho altamente regulamentados (Noruega, Áustria, por exemplo);
4) que uma das mais baixas taxas de desemprego foi, até pouco, a do Japão, país clássico do emprego vitalício e esse panorama só começou a mudar a partir da desaceleração da economia japonesa.
Tudo isso nos convida a refletir sobre o caso brasileiro. Não para negar que o desemprego é fenômeno complexo, de muitas causas, nem para fugir à necessidade de certos tipos de flexibilização. Deve-se evitar, contudo, a simplificação enganadora que faz crer, por exemplo, que uma legislação mais flexível será capaz por si só de representar mais que um paliativo. Algumas modalidades de flexibilização como a facilitação de despedidas maciças ou o corte de salários são particularmente traumáticas para os trabalhadores mais vulneráveis. Não se trata de abstrações macroeconômicas. Elas causam sofrimento e desespero a seres de carne e osso. Implementá-las poderá criar empregos a varejo, mas não haverá mais nada a fazer no momento em que os juros altos destroem postos de trabalho por atacado? Não seria melhor utilizar o potencial positivo da flexibilização como complemento e não substituto do crescimento?
Quando comecei a escrever este artigo, minha filha caçula gravava uma faixa do disco de Gabriel o Pensador, que se intitula “A Dança do Desempregado”. Não lembro bem do refrão, mas é algo assim: “Se você ainda não dançou, é bom aprender, pois vai dançar”. Espero que desta vez o nosso pensador se engane e essa dança lúgubre não venha fazer concorrência aos passos de compulsiva euforia e escassa imaginação que a Bahia nos exporta com cansativa regularidade no Carnaval.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/01/1998.