Com o desemprego de massa chegando a 13% e sintomas inconfundíveis de desindustrialização precoce, o Brasil está mais longe que nunca de construir economia dinâmica e sociedade integradora. Para quem quiser entender o mecanismo que nos condena a essa situação, recomendo a leitura iluminadora do “Trade and Development Report”, 2003, da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), dedicado ao tema “Capital Acumulation, Growth and Structural Change” (www.unctad.org).

Faltam alguns dias apenas para que se completem 21 anos do início, no México, da crise da dívida externa da América Latina (outubro de 1982). Durante esse longo período _uma geração inteira sacrificada_, a política econômica subordinou tudo à conquista da estabilidade de preços. O perigo da hiperinflação foi exorcizado. Mas, salvo casos raros, nunca se garantiu estabilidade e previsibilidade aos dois preços básicos da economia: a taxa de juros e o câmbio.

Sem câmbio estimulador das exportações e juro para baratear o custo do capital, o investimento ficou abaixo dos 20% do PIB e caiu hoje no Brasil a menos de 18%. Está muito distante da faixa de 25% a 28%, necessária a um crescimento satisfatório (em países asiáticos, o investimento supera com frequência os 30% do PIB). A indústria começou a encolher de tamanho, tanto na geração de emprego quanto em valor agregado.

Os setores industriais que sobrevivem só o fizeram graças a ganhos de produtividade com a demissão de trabalhadores. No Cone Sul, por exemplo, a indústria respondia, em 1970, por 20,8% do emprego total, participação que desabou a 11,8% em 2000, nove pontos percentuais a menos!

Essa queda seria natural se a desindustrialização tivesse sido virtuosa, como nas economias avançadas, nas quais ela ocorreu quando a renda média per capita havia atingido entre US$ 11.000 e US$ 12.000, mais que o dobro do que vem sucedendo na América Latina. A esse nível de prosperidade, a sociedade já é capaz de gerar renda que permite às pessoas consumir quantidades cada vez maiores de serviços sofisticados, empregando nesse setor boa parte da mão-de-obra desempregada pela indústria.

É muito diferente o que acontece entre nós. Sofremos de desindustrialização precoce, a que golpeia antes da elevação da economia a níveis razoáveis de prosperidade e eficiência. Mesmo na indústria remanescente, tendem a desaparecer ou enfrentar dificuldades crônicas setores como os de mecânica pesada ou eletroeletrônicos, com maior potencial de aumento de produtividade e de progresso tecnológico.

O encolhimento prematuro da indústria é paralelo ao aparecimento do fenômeno do desemprego de massa na América Latina e, devido à frequência das terapias recessivas, à erosão dos salários reais até dos que conseguem agarrar-se aos empregos, conforme se vê hoje em dia no Brasil. A consequência é que as pessoas dispõem de muito pouca renda para gastar em serviços, mesmo essenciais, como os transportes, para não falar de supérfluos, como lazer e diversões.

Não existe, assim, um dinâmico setor de serviços com capacidade de absorver os despedidos da indústria. Uma das poucas áreas a revelar dinamismo _a agricultura e a agroindústria de exportação_ é intensiva em tecnologia e capital, tendendo a agravar o êxodo rural. O que sobra para os excluídos é a precariedade e a insegurança do trabalho informal só para sobreviver.

A tendência é que essa situação se auto-perpetue, porque o ajuste à crise dos 80 foi feito na base de aumentar, não de reduzir, a dependência em relação aos financiamentos externos. A rigor, apesar dos acordos Brady, jamais saímos da crise da dívida. Apenas mudamos um tipo de endividamento _o com os bancos privados recicladores dos petrodólares_ por outro _o do lançamento de empréstimos e títulos a milhares de tomadores.

Trocamos de dívida, mas não de canga, passando do pelourinho para o tronco, onde permanecemos de pés e mãos amarrados, sob o vigilante chicote dos feitores do mercado financeiro internacional. Muitos dos mentores da continuidade dessa política jogam tudo na premissa de que as dificuldades são passageiras e voltaremos, graças ao bom comportamento, a ter acesso a novas e incessantes doses da droga financeira em que nos viciamos.

O relatório da Unctad é um jato de água gelada nessa quimera. Mostra que os fluxos financeiros para países emergentes parecem estar no fim de um segundo ciclo de dez anos de expansão e contração: o primeiro entre 1970 e a crise de 1982, o mais recente a partir de 1990. Ambos são similares na magnitude dos recursos (cerca de US$ 1,2 trilhão líquidos). Em lugar de fazerem parte de um padrão que se repete, cada um deles obedece a políticas específicas em resposta a problemas globais _no primeiro caso, a necessidade de reciclar os petrodólares, no segundo, a oportunidade criada pelo Plano Brady para livrar os bancos americanos de empréstimos irrecuperáveis.

O último ciclo atingiu o cume em 1996, declinando desde então. Entre 1997 e 2002, a transferência líquida de recursos dos países em desenvolvimento para os avançados chega a quase US$ 700 bilhões. É difícil ver como esse movimento poderá ser invertido enquanto a economia mundial não voltar a crescer vigorosamente, restabelecendo a oferta de capitais e o apetite de risco. No momento em que os macrodesequilíbrios econômicos entre os grandes obrigam a economia americana a devorar por dia US$ 2,7 bilhões só para manter-se de pé, não se justifica expectativa favorável a curto prazo.

Em vez de repetir a desastrada aposta feita pelos gestores econômicos no passado recente, a saída sensata é um esforço sistemático para reduzir o peso da dívida, aumentar continuamente o salto comercial e reduzir ao mínimo a dependência financeira externa. Como fizeram os asiáticos, que, graças a isso, crescem neste ano a 5,3% (média de 41 países!), com previsão de 6,1% para 2004, refutando o pessimismo dos que nos querem condenar à mediocridade perpétua do crescimento anêmico.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/10/2003.