Dentro em pouco, completam-se dez longos anos em que a vida cultural e o debate público deixaram de contar com a inteligência fulgurante e provocativa de José Guilherme Merquior. A atualidade do que ele propôs para o Brasil nos seus últimos dias de vida é testemunho da segurança de intuição e análise com que captava a cultura e a história do país.
O que foram esses derradeiros dias de combate desigual contra o câncer com as armas da razão e da inteligência foi dito de modo perceptivo incomparável por nosso comum amigo, o embaixador Marcos Castrioto de Azambuja:
“Procurava encapsular a enfermidade dentro de parâmetros tão claros, tão perfeitamente definidos, tão exatamente informados sobre as perspectivas boas ou más da evolução do seu mal que pareceria que a própria doença se veria obrigada a ter um comportamento controlado pela lúcida racionalidade de José Guilherme”.
Castrioto refere-se aos boletins rigorosos pelos quais, sem queixas ou autocomiseração, nosso amigo descrevia cientificamente o avanço implacável da enfermidade. Perto do fim, mobilizou as forças restantes para o que seria sua última palavra: a palestra de abertura do ciclo “O Brasil no Limiar do Século 21”, organizado por Ignacy Sachs.
Foi em 17 de dezembro de 1990. Tomei o trem para ir escutá-lo em Paris e voltei a Genebra na mesma noite. Minha impressão ficou registrada nesse escrito da época: “…tive quase um choque físico ao revê-lo. Estava devastado pela doença; sua cor, seu olhar, seus traços faciais, sua extrema fragilidade e magreza pareciam de alguém que tivesse retornado da casa dos mortos. No entanto, quando começou a falar, sem texto escrito, sem notas, num francês límpido como água de fonte, o auditório se desligou do drama a que assistia.
Durante quase uma hora, acompanhamos como a história do Brasil se renovava sob os nossos olhos por meio da sucessão e do entrechoque dos diversos projetos que os brasileiros sonharam para o país desde a independência. Terminada a palestra, foi a vez de Hélio Jaguaribe falar. Exausto com o esforço descomunal, José Guilherme cruzou os braços sobre a mesa e neles repousou a cabeça, no gesto de um menino debruçado sobre a carteira da sala de aula”.
Originariamente previsto para seminário sobre um século da República, que acabou por não realizar-se, o tema que lhe tinha sido proposto prestava-se de forma admirável e antecipatória ao que seria o coroamento de uma vida de estudo e reflexão: “Brasil: Cem Anos de Balanço Histórico”. Foi, em realidade, muito mais que isso, o panorama de toda a evolução nacional, reinterpretada conceitualmente por uma das mais poderosas mentalidades críticas do nosso tempo. A primeira parte era a discussão das grandes teses sobre a colônia, a polêmica entre Sérgio Buarque de Holanda e Jaime Cortesão, o debate sobre o pretenso feudalismo, o patrimonialismo de Max Weber, a força ou a debilidade da Coroa, a tradição centralizadora.
Vinha, em seguida, a passagem em revista da meia dúzia de grandes projetos históricos do “Brasil Nação”, assim enumerados e batizados pelo autor: o projeto Andrada, de José Bonifácio (Executivo forte, imigração em vez de escravatura, o crédito do Banco do Brasil, que Merquior chama de componente “schumpeteriano”), o projeto liberal oligárquico e escravagista vitorioso; o jacobinismo positivista e republicano em contradição com a oligarquia da República Velha dos fazendeiros; o consulado getulista modernizador e autoritário; o semi-bismarckianismo de Kubitschek; a modernização autoritária dos militares.
Em 1990, via ele a emergência de projeto de um “neocapitalismo produtivo”, que opunha ao capitalismo especulativo da cultura da inflação e do cartorialismo. Para isso, seria preciso resolver dois desafios. Um deles era a refuncionalização do Estado, a fim de passar do Estado produtor ao papel de promotor e protetor. De quê? Ele mesmo responde: “Promotor de estratégias globais de desenvolvimento, porque há uma diferença muito grande entre os sonhos de certos neoliberais, de quase eliminação do Estado, e o papel, a meu ver ainda tão evidente e necessário, do mesmo Estado em relação a certas definições estratégicas quanto ao futuro de nossa economia e sociedade”.
Pressentindo o que se começava a fazer naquele momento, Merquior mostra que nunca poderia ter sido o ideólogo, como se pretendeu, de certo tipo de liberalismo, pois afirma categoricamente: “Não se pode pura e simplesmente demolir o Estado, e não falo apenas do Estado enquanto ordem jurídica, legal. Não podemos renunciar ao Estado Dux (quer dizer estrategista), o que, aliás, seria quimérico; o que devemos afastar é o estatismo, que é outro fenômeno”.
O segundo desafio é do Estado “protetor dessas imensas camadas da população brasileira ainda sem teto, sem alimentação apropriada, sem escola e sem acesso à Justiça, que é a quarta dimensão da crueldade social no Brasil, (pois) … o acesso real, prático e eficaz da população ao sistema (judiciário) continua uma mentira”.
O texto se encerra apontando a necessidade de integração das massas com a América Latina e com a economia mundial. Esse esforço de integração haveria de “determinar o que há de melhor nas preocupações e angústias do espírito brasileiro neste momento”. Não se poderia dizer melhor: nenhuma palavra perdeu atualidade.
Da mesma forma, não mudarei o fecho de artigo em que, há quase três anos, já dava expressão às minhas saudades. “Angústias e preocupações continuam conosco. Só não temos mais para ajudar-nos a dissipar essas brumas a luz da inteligência de José Guilherme, sua verve e ironia, sua paixão pelas idéias e pelo Brasil, sua cultura assombrosa. No desconsolo dessa perda sem remédio, abraço Hilda e seus filhos comovidamente.”
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 31/12/2000.