Imagine que os nossos grandes poetas, Castro Alves ou Drummond, tivessem, cada um deles, seu mausoléu, em meio a fontes, parques floridos e pomares de laranjeiras. Que as pessoas, sobretudo os jovens, acorressem para, descalços, pois pisam solo sagrado, se recolher interiormente, beijando o mármore, tocando a pedra com a testa, depositando sobre o túmulo braçadas de rosas vermelhas, caixas de doces que outros visitantes saboreiam.

É difícil para nós imaginar a cena, já que nem sabemos em geral onde dormem nossos poetas. É essa, contudo, a imagem que trago de cinco dias no Irã: o túmulo do poeta Hafez, que viveu nos idos de 1300, na entrada de sua cidade de Chiraz. Podia ter sido a tumba de Saadi, na mesma cidade, ou a de Omar Khayyam, a de Ferdosi, perto de Meshed. Não faltam aos persas antepassados gloriosos, Ciro, Dario, Xerxes, Cambises, conquistadores da Babilônia e do Egito, quase vencedores dos gregos. Ali jazem alguns deles, nas magníficas ruínas de Persépolis, mas os visitantes são esparsos. Deve significar alguma coisa sobre a alma de um povo que seus lugares de peregrinação sejam os túmulos dos poetas, não os dos conquistadores.

Não estava preparado para o que vi. Tentei prevenir-me contra a influência preconceituosa da imprensa ocidental, mas, mesmo assim, foi uma revelação encontrar país mergulhado tão a fundo em processo de transformação. Não que estejam ausentes as resistências, as tensões e os conflitos entre partidários da mudança e do status quo. Mas sente-se nitidamente que as forças da reforma têm a dinâmica a seu favor.

Vão ficando para trás, cada vez mais longe, os tempos turbulentos da revolução, a ocupação da embaixada americana e a tomada de reféns, a guerra contra o Iraque, que deixou 1 milhão de mortos do lado iraniano, o isolamento quase completo do país. A economia se abre gradualmente, favorecida pelo preço do petróleo, que lhe rende exportações de US$ 16 bilhões por ano; nas universidades, as moças já superam em número os rapazes. O cinema reinventa o neo-realismo italiano do pós-guerra e conquista prêmios em festivais com a discussão franca dos problemas da sociedade.

Impressionou-me a qualidade dos ministros e dirigentes que encontrei, especialmente do presidente Khatami e do chanceler. Passo a passo, o Irã vem conduzindo uma política externa brilhante para romper o isolamento, primeiro por meio da Itália, França, Alemanha; em seguida, para caminhar progressivamente em direção à normalização das relações com os Estados Unidos. Na diplomacia das grandes organizações internacionais, os iranianos dão lições sobre como utilizar os foros multilaterais para projetar a influência e o prestígio do país. Dispõem, para isso, de um equipadíssimo Instituto de Relações Internacionais, com dezenas de pesquisadores em tempo integral, e de uma biblioteca especializada para dar inveja a qualquer país da América Latina. Publicam revista especializada em não sei quantas línguas, do russo (para as repúblicas recém-independentes da Ásia Central) e o árabe ao swahili, para a África. Jamais tinha visto, fora dos Estados Unidos, algo comparável.

É verdade que precisam desse instrumental, mais talvez que outros. Como me disse um dos pesquisadores do instituto, não é fácil realizar política externa racional quando há de um lado os talibãs do Afeganistão e do outro o Iraque de Saddam Hussein…

Enquanto esperam remover obstáculos como o veto americano ao início de negociações para seu ingresso à Organização Mundial do Comércio, os iranianos multiplicam uma presença ativa nas Nações Unidas, onde, graças a eles, decidiu-se dedicar o ano próximo ao diálogo entre as civilizações.
A fórmula é uma resposta frontal aos que, baseados em leitura parcial do livro de Samuel Huntington “The Clash of Civilizations”, insistem em ver nas diferenças, muitas vezes de fundo religioso, entre as grandes civilizações e culturas, os germes de conflitos futuros.

A relação entre esse diálogo e a globalização foi justamente o assunto que explorei em palestra no Instituto de Teerã. Procurei mostrar que o verdadeiro sentido da globalização está precisamente na possibilidade de romper, de vez por todas, o relativo isolamento e falta de contatos em que têm vivido as grandes famílias de civilização. É claro que esses contatos sempre existiram, pois os avanços na história se fizeram a partir da revolução neolítica da agricultura, ocorrida há 8.000 ou 9.000 anos nessa mesma região. Em seguida, as trocas de sementes e animais domésticos, assim como as descobertas na astronomia, na matemática e na escrita, com a Babilônia, o Egito, além do intercâmbio com a China pela Rota da Seda, foram criando sucessivas civilizações, cada uma com dívidas imensas para com as outras. Os contatos eram, porém, difíceis, custosos, esporádicos. Ora, a essência da mutação tecnológica na raiz da globalização é tornar mais rápido e barato o fluxo físico das informações, das telecomunicações. Nada mais lógico e natural, portanto, que essas tecnologias sejam postas ao serviço do intercâmbio de conhecimento, valores e crenças entre as diversas culturas humanas.

Para tanto é indispensável o respeito ao outro, a disposição de escutar e, quem sabe, de aprender, a renúncia a impor uniformidade, à dominação, ao desejo de querer que todos sejam cópias do que somos. Foi esse o erro do xá, ao tentar modernizar e ocidentalizar seu povo à força, obrigando-o a trair a própria cultura. A violenta reação que se seguiu foi talvez a primeira grande insurreição contra o conceito falso de globalização. Agora que as convulsões são coisa do passado é tempo para que nós, de outra cultura, voltemos a nos enriquecer nas fontes de uma civilização em que tudo, até os nomes de lugares, virou sinônimo de requinte: Chiraz, Isfahan, Tabriz, a caligrafia, os arabescos, as miniaturas coloridas, os tapetes, os frutos e perfumes, a inacreditável mesquita de porcelana azul, os poetas inebriados da mística do sufismo, que vê no amor e no vinho os símbolos da unificação do ser com a realidade última.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/11/2000.