Berlim, Alexander Platz. Nada resta do cenário do romance proletário de Alfred Doeblin. Domingo, 9 de janeiro. Gente com bandeiras vermelhas, jovem em maioria, começa a reunir-se, vigiada por um exército de policiais em carros de assalto ou a cavalo. É o aniversário do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. O governo quer evitar a repetição dos choques violentos de 1999, o 80º aniversário do atentado brutal que antecipou os horrores do nazismo alguns anos mais tarde.
Como definir a sensação que se tem em Berlim? Caminha-se pela Karl Marx Allee, passa-se pela Chancelaria provisória, prédio estranho no qual só se preservou da construção anterior o balcão central de onde Liebknecht anunciou a República Socialista. Não muito longe ficavam a Chancelaria e o “bunker” de Hitler, terra poluída e camuflada por edifícios banais, sem características, de propósito para não lembrar. Ao lado, na Potsdamer Platz, o magnífico conjunto desenhado por Renzo Piano, os prédios de cerâmica ou tijolos trazendo as cores quentes de Siena ao escuro céu berlinense. Um pouco além, em lugar do Reichstag incendiado pelos nazistas, a cúpula transparente, o cone de espelhos de Foster, que puxa o espectador para dentro e contagia de movimento a paisagem.
O Reichstag é um dos exemplos da atual tentativa alemã de “reconstrução crítica” do passado, conservando até as inscrições deixadas na parede pelos soldados russos. Até data recente, os governos tinham usado o urbanismo e as arquitetura para deliberadamente apagar a lembrança do militarismo prussiano, do tenebroso período nazista, mediante a escolha seletiva do que merecia ser reconstruído ou não. O palácio imperial, por exemplo, a Chancelaria do Reich é como se nunca tivessem existido.
No entanto a manipulação do espaço urbano não consegue fazer calar a voz inquietante do vazio, a presença do ausente. Entre a Biblioteca e a Universidade Humboldt, onde ensinou Hegel e estudou Marx, com os retratos dos seus 29 Prêmios Nobel, há na praça um estranho monumento do silêncio. No chão, duas placas de vidro permitem ao visitante espiar um espaço subterrâneo ocupado por estantes vazias: foi aqui que os nazistas queimaram os livros dos filósofos, antes de começar a queimar seres humanos, como previra Heine.
Em nenhuma outra cidade sente-se tanto a presença trágica da história do século 20, a imensa carga de sofrimento e crueldade que emana dos edifícios sombrios. Muito dessa dor, desse impulso de aniquilação e morte foi gerado pelo conflito implacável que cedo substituiu na sociedade alemã o vínculo de solidariedade, a redução da injustiça e da desigualdade que deveriam dar um mínimo de unidade e coesão a qualquer comunidade humana. É devido à memória do que aconteceu nos anos 20 e 30 que os alemães do pós-guerra passaram a considerar quase sagrada a busca do consenso social, do equilíbrio na participação dos benefícios, na vocação comunitária da empresa econômica. Eu me encontrava em Berlim quando o chanceler Schroeder evocava isso tudo, ao anunciar o pacto pelo qual governo, sindicatos, empresários põem-se de acordo para gerar empregos e ativar a economia.
É assim, só assim que se pode, por meio do reforço do vínculo social, exorcizar o medo do retorno da luta atroz entre vermelhos e negros. Ou, como entre nós, a guerra civil não declarada da criminalidade engendrada pela miséria desumanizadora, o desespero da falta de perspectiva de emprego ou de melhoria de vida, a brutalização da droga.
Vôo de Berlim para Lisboa e aqui encontro um casal amigo de brasileiros de passagem. Eles me contam a conversa com um motorista de táxi português que, após morar 30 anos no Rio, voltou há cinco anos para Portugal e só se arrepende de não ter voltado antes. Sua filha, brasileira, ganha aqui o mesmo que no Brasil, mas nem quer ouvir falar de retornar ao Rio porque, pela primeira vez na vida, sente-se livre e, sobretudo, segura. Pode ir a qualquer lugar pois está livre do medo.
Minha amiga, grande especialista em educação, é de São Paulo e me confessa: tenho vergonha de dizer, mas, no carro, quando vejo um menino aproximar-se, fecho tudo, tenho medo de crianças! É possível resignar-se a isso, a essa anormalidade de comportamento que nos faz ter medo de crianças? É possível comemorar os 500 anos de um país prisioneiro do medo, não do comunismo nem da ideologia, mas do medo puro e simples, que, como um muro de gelo, separa adultos de meninos, gente clara do povo escuro? É preciso, neste aniversário do princípio da “construção interrompida” do Brasil, lançar um diálogo sobre como atacar as causas do nosso medo. A culpa é de todos nós, das gerações passadas, que nos legaram essa bomba de retardamento, e da atual, governos, oposições, sociedade civil, que fracassou em desarmá-la.
O problema não é só nosso. Existe no mundo inteiro sob formas diversas. Às vezes é o medo do desemprego, da insegurança do emprego, da precariedade do futuro que alimenta a angústia da sociedade sobre a globalização e origina manifestações como as de Seattle. Em alguns dos países mais prósperos, o medo do crime, dos efeitos da marginalização dos excluídos, das minorias tem levado à expansão do universo carcerário, à repressão e ao emprisionamento de alta proporção dos jovens. É essa a solução para nós ou será melhor ter a repressão apenas como último recurso e buscar, por meio de redistribuição, reforçar o vínculo social?
Meio século atrás, Antonio Candido disse que o problema de sua geração era o medo, e a frase serviu de epígrafe a um poema de Drummond. O problema da nossa geração continua a ser o medo, diferente em caráter, mas sempre o medo. É preciso começar a enfrentá-lo.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/01/2000.