Em 1792 , três anos após a Revolução Francesa, o governador de Angola, Almeida e Vasconcelos, queixava-se de que os escravos, principal, quase única mercadoria de exportação da colônia, fossem “um gênero que com tanta facilidade perece”. Proposta da época para estabelecer uma companhia negreira calculava o lucro como certo desde que “apenas” morressem, antes do embarque, 12% dos escravos e outros 15% durante a travessia marítima. Em 1750 chegara a Luanda navio pertencente a um certo Antonio Ramalho e, dois anos mais tarde, não conseguira preencher a carga de 300 a 350 pessoas porque os embarcados morriam mais depressa do que se lograva trazer a bordo os substitutos: 500 cadáveres tinham já sido atirados à praia. Não é de admirar que os navios negreiros fossem no Brasil chamados “tumbeiros”, de tumba, isto é, caixões mortuários flutuantes.
Evoco esses horrores olhando da janela a cúpula de São Pedro. Estou no Domus Sanctae Marthae, espécie de hotel dentro do Vaticano para clérigos e conferencistas. Vim a convite do cardeal Poupard, presidente do Conselho Pontifical para a Cultura, que me pediu para falar sobre “A Fé e a Razão na Economia”.
Em lugar de dissertação filosófica, para a qual me faltaria de qualquer modo competência, preferi tratar do concreto, de coisas de carne e sangue, abordagem que me pareceu mais apropriada a uma religião que acredita na encarnação, em um Deus que se fez homem por querer partilhar a condição humana.
Como foi possível que prática tão aberrante e desumana pudesse ser continuada por quase meio milênio sem provocar mais do que um mínimo de reações de indignação moral? Como explicar a traição das religiões e seus princípios, a indiferença da razão econômica aos valores humanos?
Durante mais de 400 anos, estima-se que cerca de 11,5 milhões de africanos foram trazidos à força para as Américas, sem mencionar os 10 milhões de vítimas do tráfico no interior da África e para os países árabes. Não se sabe quantos foram mortos na captura, os cálculos variando de cinco de cada deportado a um morto para cada escravo efetivamente embarcado. De qualquer modo, um dos mais hediondos crimes da história.
Longe, porém, de considerar essa economia da morte uma monstruosa anomalia, muitos contemporâneos a encaravam como elemento normal e corrente da vida econômica, um negócio como outro qualquer. Um negócio, aliás, particularmente lucrativo, como escrevia em Londres, em 1745, Malachy Postlethwayt, membro da Royal African Company, o qual opinava que: “O comércio de negros (…) pode ser justamente estimado como inexaurível fundo de riqueza e poder naval para esta nação (…), o primeiro princípio e fundamento de todo o resto, a mola principal da máquina que põe em movimento todas as engrenagens”.
O professor James A. Rawley, historiador do tráfico transatlântico, assim resume o significado do fenômeno: “O tráfico fez parte da transição da Europa para o capitalismo, a nação-Estado e o imperialismo. Expressão tanto da Revolução Comercial como da Industrial (…), alimentou o crescimento da Europa Ocidental (…), solucionou um agudo problema de mão-de-obra, tornou possível o desenvolvimento da América tropical e semitropical. Foi o vínculo mais importante entre a Europa e a América, de um lado, e a África, do outro.
Possibilitou a elevação do nível de vida de muitos europeus e americanos, ao mesmo tempo em que degradava a vida de numerosos negros escravizados”.
Que essa aberração tenha sido vista como natural por povos nominalmente cristãos, católicos ou protestantes, nos obriga a encarar de frente o problema do relacionamento entre economia e moral, se não quisermos falar de religião. Admito ter escolhido um caso extremo, talvez o mais extremo que se possa imaginar. Não faltam, contudo, outros exemplos de práticas hoje julgadas inaceitáveis moralmente, mas que eram, tempos atrás, apresentadas como condições inevitáveis de uma economia eficiente. Basta lembrar a exploração maciça e a pauperização dos operários no início da Revolução Industrial, quando a acumulação selvagem de capital era conquistada à custa de intermináveis jornadas de trabalho, salários miseráveis, condições de trabalho impiedosas impostas a mulheres e crianças. Alguém duvida de que não seria difícil encontrar no admirável mundo novo da globalização casos igualmente graves de desigualdade, miséria, desemprego, precariedade, insegurança, espoliação?
Não foi por acaso que a escravidão reapareceu no Ocidente quando entrava em crise o cristianismo diante da afirmação simultânea do Renascimento e do capitalismo incipiente. No que tem de melhor, na sua fidelidade ao evangelho, o cristianismo eleva o homem à dignidade de filho de Deus. Ao passo que a Renascença, em que pese sua glória, exalta os valores do mundo dos antigos gregos e romanos, dentre eles a escravidão. E o capitalismo, por sua vez, tende a tratar como mercadoria não só o trabalho, mas os próprios fornecedores de trabalho.
A questão a colocar, portanto, é se a economia deve ser autônoma em relação aos valores morais e espirituais. Se ela pertence à categoria de fenômenos como os do sistema planetário, governados por leis imutáveis, além de nosso controle. Ou, ao contrário, se ela faz parte da cultura humana e, como todas as demais manifestações da vida social, deve expressar valores humanos e morais.
É o que tentaremos explorar no futuro. Não esquecendo que o problema é particularmente relevante para um país como o Brasil, que recebeu mais de 4 milhões de africanos, dois de cada cinco, de longe a quota maior na partilha do crime, contraindo, assim, com os descendentes das vítimas, dívidas de sangue que ainda não se começou a pagar.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/05/2000.