Jared Diamond escreveu livro de nome parecido para contar a história ecológica das enfermidades, como havia feito, antes dele, William McNeill. A mensagem de meu título é diferente: mostrar como os remédios estão ocasionando conflitos comerciais cada vez mais graves. Uma das causas da reação contra a globalização que se manifestou nestes dias em Porto Alegre, esses conflitos frequentes entre a indústria farmacêutica e o interesse nacional ameaçam atingir o Brasil pela segunda vez em pouco mais de dez anos.
Quando soube que o representante brasileiro tinha bloqueado o pedido americano de instituir painel contra nosso país na Organização Mundial do Comércio (OMC) por causa das patentes farmacêuticas, tive a sensação de reviver a história de cabeça para baixo. Em 1988, eu era embaixador no Gatt, no momento em que o governo norte-americano aplicou tarifas punitivas de 100% contra vários produtos brasileiros, em represália aos alegados prejuízos causados pelo não-reconhecimento brasileiro de patentes farmacêuticas.
A diferença é que na época éramos nós a pedir um painel para condenar o que parecia (e era) violação “prima facies” do Gatt. Não existia então nenhuma norma comercial sobre o assunto, e a lei internacional, que era a Convenção de Paris, deixava aos governos a faculdade de proteger ou não as patentes em certos setores. Ainda por cima, nada justificava que um país decretasse sanções comerciais de modo unilateral, como havia sido o caso. Estávamos, assim, seguros de ganhar nosso processo.
Acontece que as regras anteriores permitiam bloquear a criação do painel quase indefinidamente (e não uma só vez, como agora). Foi o que fizeram os americanos, apesar do apoio maciço dos demais países às nossas posições. Tivemos, na ocasião, incidente que ficou célebre nos anais do Gatt. Eu acabara de reiterar, na sessão do Conselho, o pedido para abrir o processo. Em resposta, meu colega americano perdeu as estribeiras e afirmou que não se deveria dar ouvidos a proclamações altissonantes de multilateralismo feitas por piratas (pirataria era a expressão com que se mimoseava quem recusava reconhecer patentes farmacêuticas). Pedi o direito de resposta e, em meio à sala eletrizada, declarei: “Gostaria de recordar ao representante dos EUA que meu país, assim como seus vizinhos na América Latina, só teve com a pirataria um tipo de familiaridade: na condição invariável de vítima, nunca de perpetradores. E os famigerados praticantes dessa velha profissão em nossas costas eram conhecidos como Drake, Cavendish, Fenton, Morgan, nomes cuja sonoridade nada tem de português ou espanhol”. As gargalhadas e os aplausos que acolheram essas palavras desencorajaram qualquer veleidade de réplica. Conquistamos o direito ao painel, mas os interesses afetados pelas sanções (a indústria de papel, entre outras) pressionaram Brasília. Passadas as eleições, o novo governo Collor decidiu mudar a lei e o processo foi suspenso. Ganhamos no gramado, mas perdemos no “tapetão”…
Hoje a situação para nós é muito mais complicada. Dentre os inúmeros resultados da Rodada Uruguai contra os países em desenvolvimento está o acordo de Trips, sobre propriedade intelectual, que empurrou o pêndulo em matéria de proteção a patentes muito além do que seria legítimo e razoável. A lei brasileira de 1996 determina no artigo 68 que, se uma determinada patente não for “trabalhada” no Brasil, o governo pode conceder licença compulsória para alguém disposto a utilizá-la no país. Ademais, se o dono da patente quiser reservá-la apenas para importar o produto, sem fabricá-lo localmente, outros poderão importar mercadoria patenteada ou obtê-la de terceiros. Os americanos argumentam que esses dispositivos violam os artigos 27 e 28 de Trips, embora a redação ambígua e uma série de referências cruzadas e condicionamentos a outros dispositivos fazem que a questão apareça confusa e controvertida.
Por trás de tudo isso, encontra-se o esforço do Ministério da Saúde para assegurar o abastecimento de remédios genéricos e forçar preços razoáveis para os medicamentos.
Vindo logo após os casos da Embraer e da indústria automobilística, o episódio realça como, passo a passo, as nações industrializadas vêm eliminando a margem de liberdade de países como o Brasil para lançar mão de políticas e instrumentos de que os agora ricos usaram e abusaram no passado, quando ainda necessitavam proteger sua indústria nascente. A tendência começou na Rodada Tóquio, com o Código de Subsídios, imposto ao Brasil no momento em que a crise da dívida nos havia fragilizado, impossibilitando continuar a usar as devoluções de impostos para estimular a exportação de manufaturas. Não obstante, os desenvolvidos seguem aumentando legalmente o recurso a subsídios para suas exportações agrícolas (e industriais também, de forma sofisticada). Na Rodada Uruguai, o acordo de Trims, sobre investimento, tornou impossível usar o que fora entre nós a pedra angular da indústria automobilística, o “índice de nacionalização” ou “conteúdo local”, no jargão do Gatt, isto é, a obrigação do investidor estrangeiro de produzir determinada porcentagem no país. As patentes farmacêuticas, hoje obrigatórias, só foram reconhecidas no final dos anos 60 ou início dos 70 por países como a Suíça, a Itália, o Japão, o que lhes facilitou o desenvolvimento de sua indústria nacional.
O rolo compressor dos poderosos segue sua trajetória implacável. As próximas metas são impor restrições à capacidade regulatória dos Estados, expandir a fronteira do sistema de sanções da OMC à área trabalhista e de meio ambiente, ampliar as conquistas dos industrializados em propriedade intelectual, investimentos, direito à concorrência, compras governamentais. Mais do que a redução de tarifas, é isso que inspira muitas propostas de negociações comerciais de âmbito regional ou global, tudo muito bem embrulhado na embalagem brilhante e colorida de promessas de acesso a mercado que só se materializam a conta-gotas. Como no conto do paco, no qual duas ou três notas verdadeiras escondem maço de jornal velho. Infelizmente, como se vê na América Latina, otário para comprar o pacote é o que não falta.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/01/2001.