Fome e saques no Nordeste, mosquitos e dengue no Rio e em outras cidades nos convidam a um olhar sem complacência sobre a realidade que construímos em 500 anos de história e quase 180 de vida independente.
Meu amigo Marcos Azambuja diz com melancolia que começamos o século matando mosquitos e o terminamos matando os mesmíssimos mosquitos, o nosso conhecido Aedes aegypti. Anos atrás, quando enfrentávamos o contencioso com os EUA a propósito da reserva de mercado da eletrônica, ele havia comentado sermos o único país que tinha, ao mesmo tempo, um problema de informática e um problema de dengue. Recentemente lembrei-lhe a frase e ele atalhou depressa: “É, agora ficamos só com o problema da dengue”…
Marcos não gosta que o citem, pois nem todos entendem que sua inteligência fulgurante ilumina a realidade como o caricaturista genial, acentuando e exagerando o mais chocante.
O que choca justamente na frase é ela revelar a precariedade dos nossos triunfos, sempre facilmente reversíveis. Quando Oswaldo Cruz lançava às ruas os batalhões de mata-mosquitos, a República apenas engatinhava e parecia começar a realizar-se o lema de ordem e progresso. Quase um século depois, o mosquito vai à forra, sobrando-nos o consolo de que, em vez da febre amarela, ele nos brinda com doença menos maligna.
Como voltamos ao ponto de partida? Tivemos sempre notável tradição de sanitaristas e de higiene pública, não só Oswaldo Cruz e Vital Brazil, mas instituições pioneiras como Manguinhos e outras. Um brasileiro, o dr. Marcolino Candau, foi o primeiro diretor-geral da Organização Mundial da Saúde.
O mesmo, de certa forma, se pode dizer da educação. O que ficou da obra de Anísio Teixeira ou de Darcy Ribeiro, dos fundadores da USP? Ou, no terreno da cultura, das iniciativas de Mário de Andrade, de Rodrigo M. F. de Andrade no patrimônio? E a modernização do serviço público com Simões Lopes, o Dasp, a Fundação Getúlio Vargas? E as “ilhas de excelência” no setor público como o Ipea, a Embrapa, o Tesouro, a Fundação de Saúde Pública? Somos o país onde as orquestras sinfônicas já conheceram dias melhores, onde o Museu do Índio e tantos outros tombam em abandono. Por que não concluímos o que começamos, por que não sabemos dar continuidade às boas coisas?
Em “Tristes Trópicos”, Lévi-Strauss diz que “um espírito malicioso definiu a América como um país que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”. Algumas páginas adiante há uma intuição mais explicativa do que essa caricatura. A elite paulista de 1935 seria como a flora tropical: grande diversidade de espécies, mas cada uma com poucos indivíduos. Assim, uma sociedade restrita abrigava todas as ocupações, os gostos, as curiosidades da civilização, mas cada uma figurando com um só representante.
“Nossos amigos não eram verdadeiramente pessoas, mas sobretudo funções.” Havia, dessa forma, o católico, o liberal, o legitimista, o comunista, bem como o gastrônomo, o bibliófilo, o especialista em cavalos, em pintura moderna, o poeta surrealista etc.
De fato, a desigualdade e a concentração das oportunidades de acesso à educação criaram uma sociedade onde o espaço público se acanha perante o espaço privado. Este mesmo, contudo, não tem amanhã, pois depende de indivíduos isolados e não se transmite nem às famílias. Os Raymundos Castro Maya, os Ciccilos Matarazzo, os Yanns de Almeida Prado morrem e com eles desaparecem, quase sempre, suas obras. Coleções de móveis coloniais, como a de Octales Marcondes, são dispersadas em leilões. No mais das vezes, o governo tenta assumir o legado, mas tampouco o consegue, pois as administrações não possuem institucionalidade nem memória. Funcionam quando indivíduos excepcionais por sorte estão nos lugares certos. Quando estes se vão, o pior pode acontecer, até mesmo a apropriação particular do patrimônio público, como ocorreu com a célebre urna marajoara em São Paulo.
O que deduzir de tudo isso? Que somos atavicamente inferiores devido às “três raças tristes”, de Paulo Prado? Que passamos sem transição, da barbárie à decadência? Mais justo seria reconhecer que sim, temos avançado, mas em ziguezague, aos trancos e solavancos, dois passos à frente, um atrás, inversamente à fórmula leninista. Para fazer melhor, para avançar linearmente, sem retrocesso, não bastam as personalidades excepcionais no seio da elite, nem à frente da administração pública. O despotismo esclarecido, mesmo quando é mais esclarecido do que despótico, não constrói obra sólida, como mostram os exemplos de Pedro, o Grande, e do Xá do Irã.
É preciso superar os abismos da desigualdade. Mas isso tem de ser feito não como dádiva, concessão do alto. Deve nascer da mobilização popular, da tomada de consciência, em outras palavras, da ação de uma cidadania participante e organizada. Sem cidadania, o governo esclarecido acabará sucedido pelos demagogos e populistas. As conquistas contra a seca, o dengue, na cultura, serão de novo desmanteladas pelos interesses ou pela incúria. Projetos políticos baseados apenas nos arreglos entre os poderosos não perduram. Tivemos já um projeto desmobilizador, sem reforma social, em melhores condições, pois se cumpriu em época de crescimento rápido. Foi o de Juscelino e todos sabemos o que veio depois. É hora de tentar caminho diverso, que libere as energias criadoras da população. Por que as únicas áreas onde o Brasil goza de projeção internacional constante são o futebol e a música? Não será porque esses são os únicos setores dos quais o povo participa, pois não exigem educação formal? Onde existe participação popular, é mais difícil haver retrocesso.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 09/05/1998.