“A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou,/ e agora, José?/ E agora, você?” Estamos todos perplexos, não apenas o governo, ao descobrir de súbito que, “no meio do caminho, tinha uma pedra”. Vamos deixar que ela nos paralise? Saberemos contorná-la? Ou, melhor ainda, conseguiremos removê-la?

Não me refiro à crise imediata de primeiro grau. Quanto a esta, só nos cabe torcer para que as medidas do governo tenham êxito. Quando o doente vê de perto a cara da morte, não é hora de brigar com o médico. Falo é da pedra que nos proíbe de crescer. Ela tem, é certo, relação com a crise, mas não é a mesma coisa. Há mais de uma maneira de enfrentar crises. Algumas fazem ganhar tempo, mas prolongam a agonia. Outras atacam a raiz do mal e dão força para tirar a pedra do caminho.

Parto da hipótese de que se vença a crise momentânea e se tenha fôlego para passar das eleições. E depois? “Radicalizar a ortodoxia”, como se diz (admitindo-se que alguém possa chamar de “ortodoxa” a mistura de moeda valorizada, política fiscal frouxa e aperto monetário), é insistir na mesmice. Teremos mais juros altos, novo impacto desses juros no déficit orçamentário (talvez 2% do PIB), acentuação da recessão, aumento adicional do desemprego.

É o cenário “desgraça pouca é bobagem”. Entraremos de pé esquerdo no milênio ou, se preferirem, de costas para o futuro e marcha batida para o passado, única forma de descrever o encolhimento da economia e do emprego.

O cenário alternativo é desamarrar a moeda da taxa de juros, permitir que estes baixem e a moeda se ajuste à realidade. O momento mais propício para essa operação controlada é logo após a tempestade e as eleições, quando menor será o risco de que a inflação rebrote, pois o desemprego é generalizado, não há pressões salariais, preços de alimentos estão em baixa, a indexação é coisa do passado e, no mundo inteiro, a ameaça é mais de deflação que do contrário.

Só assim a economia e o emprego voltarão a crescer, o déficit orçamentário e a dívida se reduzirão pelo efeito conjugado do aumento da arrecadação e a queda dos juros e se diminuirá a dependência externa com mais exportações e menos importações.

Mas por quanto tempo? Isso vai depender da qualidade das transformações estruturais. Não importa se o governo é de esquerda ou direita, na China ou na Espanha, é impossível escapar ao mínimo denominador comum: estabilidade de preços, Orçamento equilibrado ou quase, endividamento moderado, capacidade elevada de poupar e investir. Criar essas condições é obra de engenharia ao mesmo tempo política e econômica.

Política porque não se muda a economia e a sociedade sem o poder efetivo de decidir e agir. Entre nós, a premissa dos últimos anos foi que não se chegaria longe sem ou contra o Congresso. À luz do sucedido com Jânio, Jango ou Collor, a conclusão não parecia absurda. Passando da teoria à prática, o êxito formal foi notável, pois as forças centro-conservadoras se congregaram, sem exceção, em coligação que só encontra precedentes pela abrangência na República Velha ou na aliança PSD-UDN-PTB do governo Dutra.

Forjado o instrumento, sua utilização não produziu, contudo, mais que colheita decepcionante. Será que é porque coligações desse tipo servem para conservar e não para transformar? Ou porque as reformas desejadas na divisão do bolo com Estados e municípios, no regime de impostos e incentivos, nas vinculações de receita, nas aposentadorias dos altos escalões contrariam no fundo os interesses dos que deveriam aprová-las?

Se assim for, receio que a solução por meio da reforma política (a fidelidade partidária, a obrigação de votar com o líder) acabe deturpada, diluída e frustrada como as demais reformas.

Por que não buscar caminho diferente? Em lugar de esperar demasiado da desmobilização, da “conciliação das elites”, precisamos de projeto mobilizador de forças sociais mais amplas. Mobilizar a sociedade não significa necessariamente hostilizar ou excluir o Congresso, mas simplesmente utilizar a pressão social como recurso legítimo e necessário para prevalecer sobre interesses estreitos e setoriais. Para isso, faz falta aliança que canalize o potencial criativo da crise para dar à população as coisas concretas de que ela necessita: emprego, salário digno, perspectiva de melhorar a vida.

Na Holanda, país com o modelo mais invejado da Europa, o consenso foi alcançado, dez anos atrás, mediante o esforço de responder à pergunta: qual é nosso problema principal? No caso deles, era o desemprego, e tudo o mais foi subordinado ao objetivo de criar o máximo de empregos. No nosso, seriam a pobreza e a desigualdade.

Aceitando realisticamente que nem todos são sensíveis a essas questões (embora todos paguem as consequências, ao menos em termos de segurança pessoal), pode-se talvez começar pela condição prévia a qualquer solução a tais flagelos: o crescimento acelerado, a taxas de 6%, 7% ou mais, e de forma estável e prolongada.

Já na época de Juscelino, o crescimento era a única idéia-força capaz de unificar a nação. Não creio que fosse diferente agora. Com crescimento, há algo para todos e cada um; é mais fácil eliminar a pobreza e reduzir as disparidades, pois não é preciso despojar alguns para dar a outros. É jogo em que todos ganham, alguns mais que outros.

A distância entre essa abordagem e a que se vem tentando é a mesma que em 94 separava os críticos dos partidários da estabilização imediata. Enquanto preparávamos a introdução da nova moeda, dizia-se que ela não daria certo por faltarem os requisitos mínimos só possíveis após as reformas constitucionais. Sempre afirmei na época que o inverso é que era verdade: só a estabilização naquele momento geraria as condições para completar as reformas indispensáveis a sua manutenção. Continuo a pensar o mesmo.

Como na Holanda, na Itália de hoje, no governo democrático do Chile, o crescimento com integração social mediante a incorporação dos marginalizados ao mercado de trabalho é a melhor receita a fim de abrir caminho gradual para as reformas penosas, aquelas em que se perde algo. Elas são aceitáveis apenas quando se trocam sacrifícios por compensações. Não é fruto espontâneo que nasça em árvore. É preciso incansavelmente convencer as pessoas, como se fez com a moeda.

Tivemos êxito com a estabilidade, hoje patrimônio comum. Já as reformas, são raros os que entendem o que se deve fazer e o porquê. O ônus de informar e explicar cabe sempre a quem propõe, no caso, o governo. Este é quem tem de demonstrar que estabilidade sem crescimento é estagnação, mas crescimento sem estabilidade é bolha que explode no ar.

E quando Drummond nos pergunta: “Você marcha (…), José, para onde?”, ele é quem tem o dever de provar que marcharmos para integrar o Brasil com seu próprio povo.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/09/1998.